terça-feira, 21 de outubro de 2008

As bobagens que dizem por aí...

Depois eu mando uma reflexão minha sobre a crise, por hora um copy & paste de um post do blog do Nassif, comentando artigo do Demetrio Magnoli...


Magnolli e os filhos de Marx



Demétrio Magnolli faz parte do grupo que, nos últimos tempos, decidiu atender à demanda da mídia por pensamento neocon. Bom analista de política internacional, chutou para cima as veleidades intelectuais e passou a recorrer a toda sorte de simplificações conceituais. Definiu um inimigo - a quase extinta raça dos "filhos de Marx" - e chutou para cima a sofisticação, porque guerra é guerra.

Seu artigo “Lehman Brothers, Marx & Sons” é demonstração cabal dessa pobreza retórica.

Quando o Lehman Brothers entrou em bancarrota, provocando a implosão de Wall Street, os filhos órfãos de Karl Marx começaram a disseminar uma narrativa ideológica da crise que é tão desonesta quanto reacionária. Essencialmente, eles dizem que o neoliberalismo faliu e que a causa da catástrofe é a desregulamentação do mercado financeiro. Neste mantra, convertido em senso comum, uma mentira factual fica protegida atrás da paliçada conceitual de uma fraude.

A não ser que exclua o presidente da França, da Alemanha, o presidente do Banco Central Europeu e a torcida do Flamengo dessa categoria, sua afirmação é uma tolice enfática.

O neoliberalismo não faliu porque não existe. A fraude conceitual ampara-se no ocultamento dos dados empíricos. Nos anos 20, tempos do liberalismo, os gastos públicos sociais nos EUA (pensões, educação, saúde e welfare) não alcançavam 5% do PIB. Depois, com o New Deal e os "30 anos gloriosos" do pós-guerra, criou-se o Estado de Bem-Estar e os gastos sociais cresceram até perto da linha de 20% do PIB. Segundo o teorema histórico que emoldura a noção de neoliberalismo, o Estado de Bem-Estar ruiu sob os golpes hayekianos de Ronald Reagan. Mas - surpresa! - os números contam outra história. A "era Reagan" não provocou contração dos gastos sociais, conseguindo apenas estabilizá-los temporariamente. Hoje, eles ultrapassam os 20% do PIB (veja o gráfico no blog http://www.terra.com.br/economia/blog/iconomia/index.htm, de Gilson Schwartz).

Provavelmente, Gilson preparou o gráfico para mostrar ao Magnolli que – ao contrário do que supõe o geógrafo – o Estado nunca deixou de cumprir seu papel com as políticas sociais. Aí o Magnolli resolveu utilizar o gráfico em proveito próprio, esqueceu que, no primeiro parágrafo, situava as críticas ao neoliberalismo na desregulamentação do mercado financeiro e tascou os gastos sociais no meio da história. A coerência dos argumentos não resistiu a dois parágrafos: é um recorde.

O Estado de Bem-Estar é um fruto da democracia de massas. O neoliberalismo só poderia existir com a restauração da democracia restrita dos tempos do liberalismo, quando o direito de voto era privilégio de uma minoria.

De onde tirou isso? O que tem a ver a democracia direta com a desregulamentação do mercado financeiro? Sua conclusão é que, do pós-guerra aos anos 70, quando havia mauior regulamentação financeira, não havia democracia? Uma asneira, à altura do público que pretende atacar: os semi-extintos "filhos de Marx”, personagens criados por ele.

Os filhos de Marx não entendem isso porque hostilizam o princípio democrático, que imaginam representar uma invenção "burguesa". Eis o motivo pelo qual suas análises econômicas se chocam com os dados empíricos.

Os “filhos de Marx” não fazem a crítica do neoliberalismo, porque, para eles, é apenas uma faceta a mais do capitalismo. A crítica é feita por Krugman, Roubini, aqui no Brasil por Delfim, Bresser, Nakano, Belluzzo.

Na hipótese de desabamento de um viaduto condenado por erros de engenharia, deve-se culpar a lei da gravidade? É algo assim que fazem os filhos de Marx quando atribuem o colapso financeiro a uma combinação de ganância com livre mercado.

O que dizer desse argumento? Que o inimigo criado para ser combatido é do mesmo nível do criador.

A referência à "ganância" nada diz sobre esta crise específica, pois o imperativo do lucro é um traço estrutural da modernidade capitalista, mas diz muito acerca de um pensamento econômico contaminado pelos dogmas do cristianismo medieval. Quanto à desregulamentação, ela só existe no mundo imaginário dos ideólogos.

Todo o sistema financeiro europeu está sendo estatizado devido ao tsunami. E o bravo caçador de fantasmas atribui a crítica a esse modelo aos “dogmas do cristianismo medieval”. Em seu artigo , Gilson diz: "Ora, um dos maiores defensores da ação governamental nos mercados foi John Maynard Keynes, que tinha alergia a marxismo e marxistas. Ele revolucionou a teoria econômica há 70 anos, justamente porque soube ir além do maniqueísmo Estado X Mercado".

O economista Steven Horwitz escreveu uma carta aberta a seus "amigos da esquerda" identificando as diversas regulamentações políticas que incentivaram o tsunami especulativo no mercado imobiliário (o link está no blog de Gilson Schwartz). Ele prova factualmente que o mercado no qual se armou a tragédia nada tem de liberal, articulando-se sobre uma teia de regras, emanadas do Executivo e do Congresso, que pavimentaram o caminho rumo à concessão de empréstimos cada vez mais arriscados. Fannie Mae e Freddie Mac são corporações hipotecárias tecnicamente privadas, mas patrocinadas pelo poder público, que operavam sob garantia de resgate estatal em caso de falência. As agências reguladoras autorizaram-nas, em 1995, a entrar no mercado de subprime e exigiram dos bancos privados um aumento dos empréstimos imobiliários para devedores com poucos recursos.

A "ganância" fez o resto, mas no ambiente de liquidez abundante, propício à especulação, gerado pela política monetária do banco central americano e pela política fiscal do governo Bush.

O que espalhou a crise pelo mundo inteiro foi o subprime, um produto financeiro criado em cima de hipotecas. Ele é a bomba criada pela desregulamentação Mas o ex-filho de Marx não veio para explicar, veio para confundir. Além disso, depois de amaldiçoar os tais “filhos de Marx” que atribuem a crise à ganância, o bravo articulista atribui à ganância a crise. E tome falta de lógica.

Para salvar sua narrativa ideológica sobre os mercados desregulamentados os filhos de Marx erguem um Muro de Berlim metodológico entre as esferas da economia e da política. O conservador Horwitz é mais honesto, evidenciando a presença ubíqua da "mão visível" do Estado no financiamento privado do mercado imobiliário americano. Mas a sua honestidade tem limites, definidos por uma perspectiva ideológica. A utopia inviável de Horwitz é um retorno à idade de ouro liberal e ele prefere criticar a "mão visível" democrata à republicana. Por esse motivo, menciona só de passagem a política econômica da "era Bush" e, sobretudo, não a vincula à guerra no Iraque.

Pela primeira vez na história, uma guerra de grandes proporções foi conduzida por um governo que não conclamou os cidadãos a fazerem sacrifícios, mas, explicitamente, a "irem às compras". A mistura tóxica de juros baixos e cortes de impostos com um déficit orçamentário crescente formou o pano de fundo da ciranda especulativa num mercado intensamente regulamentado. A implosão das altas finanças nos EUA, contagiando os mercados internacionais e anunciando a recessão global, não é obra exclusiva do governo Bush, mas tem as digitais de uma "mão visível" disposta a tudo para assegurar apoio interno à política externa cruzadista dos neoconservadores. A análise econômica reacionária dos filhos de Marx oculta tudo isso.

Lá vem os “filhos de Marx” descendo a ladeira. É uma lógica tão tortuosa quanto a dos blogueiros de Veja.

Neoliberalismo é um signo que adquiriu diferentes significados desde o seu uso inicial, no fim do século 19. A partir das "revoluções" de Reagan e Margaret Thatcher, contudo, sua utilização se disseminou e seu significado deslizou rumo a um colapso. Depois da queda do Muro de Berlim, neoliberalismo sofreu um processo de redução fetichista, convertendo-se em senha de identificação coletiva de uma confraria dos derrotados - algo como um lenço de lapela pelo qual um nostálgico do "socialismo real" reconhece seus iguais. Não há problema nisso, com a condição de que a nostalgia de uma minoria não destrua a capacidade pública de decifrar o sentido das coisas.

Tecla sap, por favor! Pois a profundidade do autor não me permitiu decifrar o sentido das coisas, seja lá o que as coisas forem.

Marx podia estar fundamentalmente errado, mas nunca deixou de buscar as articulações entre economia e política. Seus órfãos, traindo-o, inventaram uma economia "neoliberal" desregulamentada e denunciam uma "contradição" fatal quando os governos "neoliberais" se preparam para estatizar o núcleo do sistema financeiro. Eles não percebem que um padrão de regulamentação está sendo substituído por outro. Nem que a "mão visível" da política está presente nos dois.

Transformar a maior crise desde 1929 em uma mera mudança de “padrão de regulamentação” é demais. Nem os “filhos de Marx” merecem tanta simplificação assim.

Demétrio Magnoli é sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br





enviada por Luis Nassif