segunda-feira, 6 de abril de 2009

Alguns textos sobre a ofensiva anti-reforma agrária

A imprensa burguesa tem descarregado tintas pesadas contra a luta pela reforma agrária, a seguir dois texto, extraídos do sítio do MST, que tratam sobre a questão.

O primeiro do Osvaldo Russo, ex-presidente do INCRA, que questiona "Até quando a ofensiva anti-reforma agrária?" (http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=6531) e o outro de Silvio Sant’Ana, da Pastoral da Criança e da Fundação Grupo Esquel Brasil com o título "Desinformação e o MST" (http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=6537).

Chega de lero-lero, aos textos:

Até quando a ofensiva anti-reforma agrária?
03/04/2009

Por Osvaldo Russo*

Alguns estudiosos que se apresentam donos da verdade científica, como se a ciência fosse desprovida de ideologia e de política, consideram irracional a condução da Reforma Agrária no Brasil, seja no governo atual, com Lula, seja no governo anterior, com FHC, que, com maior ou menor ênfase, aceitaram, cada qual ao seu modo, o debate da agenda agrária colocada pelo movimento sindical e pelos movimentos sociais.

A argumentação de que pesquisadores defensores da Reforma Agrária são cooptados pelo governo não parece justa e verossímil, pelo menos entre aqueles que se destacam no meio acadêmico pela sua produção científica independente ou mesmo pela sua militância política engajada, da mesma forma que não seria aceitável a tese de cooptação entre aqueles que prestavam consultoria ao governo FHC, ao criticarem a bandeira da Reforma Agrária defendida pelo movimento sindical e pelos movimentos sociais, quer por sua "desatualização" histórica, quer por sua radicalidade e amplitude.

Ao contrário, em relação à questão agrária, é notório o afastamento do chamado mundo acadêmico do debate agrário, mas não só dele, como também de outros temas polêmicos associados diretamente à política, onde pelejam idéias, projetos e interesses de classe antagônicos. O protagonismo político das mudanças sociais ou do desenvolvimento não está como nunca esteve com as universidades e os pesquisadores, mesmo reconhecendo a relevância e indispensabilidade de sua contribuição científica nessas mudanças.

A tática, no entanto, de ofensa à independência ou ao engajamento político de pesquisadores parece somar-se, de boa ou má fé, à nova ofensiva contra o governo Lula e os movimentos sociais que lutam pela Reforma Agrária, com a tentativa de sua criminalização pelos setores conservadores, que procuram impor a sua agenda política para 2010. Há pesquisadores que não fazem coro com o governo, mas fazem coro com a Reforma Agrária. Estes também estariam cooptados pelo poder de sedução do governo?

A ausência de política seria a negação do debate ideológico e da própria democracia. Não há encenação de "pressões", ninguém encena com fome ou debaixo da lona. Há, sim, interesses, idéias e projetos em disputa, o que não significa o "ou tudo ou nada" ou o assalto ao Palácio de Inverno. Os consensos e os dissensos se fazem a cada realidade e circunstância histórica e não ao sabor de algum pensador brilhante, que queira impor o seu consenso ou o seu pensamento exclusivo, ainda que sob inspiração científica.

Ao se focar o debate na suposta cooptação e no privilégio do poder e de apropriação de recursos públicos pelos movimentos sociais reduz-se o debate à dimensão penal pautada pela direita ideológica, perdendo-se a oportunidade de se debater sobre qual Reforma Agrária nos entendemos ou divergimos. Ou, ainda, se é possível e necessária ser feita alguma Reforma Agrária e qual? A crise do capital muda alguma coisa? A persistência de mobilizações, acampamentos e conflitos no campo sinaliza o que? O sistema predatório do agronegócio é sustentável? O desenvolvimento com desigualdade é aceitável? A agricultura camponesa está fadada à economia de subsistência ou isso está mais associado ao modelo de sociedade imposto por uma classe ou grupo social? As políticas públicas de educação e de acesso à pesquisa e à tecnologia podem alterar o modo e a escala da produção camponesa, as formas associativas podem cumprir uma função econômica diferenciada e competitiva? As políticas públicas são equitativas?

Hoje, trata-se de discutir as alternativas para o desenvolvimento. Por que o Brasil é um dos raros grandes países onde a Reforma Agrária continua na agenda nacional? Será obra da irracionalidade coletiva? A crise alimentar pode não produzir o ressurgimento da Reforma Agrária como opção, mas quem disse que isso é inexorável? A ciência apartada da ideologia?

A agricultura tecnificada já existe, a modernização conservadora já ocorreu e não foi capaz de superar a crise alimentar e, na atual crise financeira e econômica internacional, está se afundando junto com o seu príncipe encantado, o capitalismo em sua versão neoliberal.

Por isso está no rumo certo a direção do PT em querer aprofundar o embate ideológico. É verdade que o agronegócio aumentou a produtividade, só que esse segmento é o primeiro a barrar a atualização legal dos índices de produtividade para fins de desapropriação. Será que as reformas agrárias que não deram certo se preocuparam com produtividade, planejamento, sustentabilidade, educação, cultura, capacitação, gerenciamento, assistência técnica, pesquisa e tecnologia? Será que não podemos estar formando um novo setor agrícola a partir de uma Reforma Agrária de novo tipo? O desmatamento na Amazônia está associado não à pequena unidade produtiva, mas à expansão do agronegócio e à penetração indiscriminada da pecuária extensiva na região.

A crise do capital é também uma crise do seu modo de produção, que concentra renda, desemprega e compromete o meio ambiente e a soberania alimentar dos povos. Os instrumentos jurídicos são resultantes do caminho que será hegemonizado na sociedade. No passado, a Bolívia fez uma Reforma Agrária minifundiária ineficiente, mas agora retoma o processo reformista em novas bases políticas, sociais, econômicas e jurídicas. É preciso reconhecer que já existem, no Brasil, quatro milhões de pequenas unidades produtoras agrícolas, entre as quais um milhão nos assentamentos, que respondem pela maior parte da produção de alimentos que abastecem o mercado interno.

Enquanto houver demanda social e realidade objetiva que sustente a coexistência conflitiva do agronegócio e da agricultura familiar e camponesa, haverá necessidade política e institucional de convivência de dois ministérios. Essa contradição só poderá ser superada pela política e não com o autoritarismo do pensamento único. A Reforma Agrária é a opção democrática e sustentável para um desenvolvimento com equidade social.

É bom saber, no entanto, que mesmo entre os que acham a Reforma Agrária em desuso, há os que a admitem, ainda que regionalizada ou só no Nordeste. Nesse debate não cabe a polarização maniqueísta entre ciência e ideologia, pois o Brasil precisa de ambas para avançar. A eleição de 2010 será uma ótima oportunidade para debatermos as alternativas do Brasil. Iremos nos envergonhar se cada um de nós não fizer a sua parte.


* Osvaldo Russo, ex-presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), é estatístico, diretor da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e coordenador do Núcleo Agrário Nacional do PT

Artigo publicado no Correio da Cidadania e no Portal do PT, em resposta ao texto "Até quando a desrazão agrária?", de Zander Navarro, publicado na Folha de S. Paulo (30/03).
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Desinformação e o MST

03/04/2009

Por Silvio Sant’Ana
Da Pastoral da Criança e da Fundação Grupo Esquel Brasil

No domingo 29/03/09, a Folha de S. Paulo estampou a seguinte manchete: “MST multiplica entidades para não perder repasses”. O texto que segue afirma: desde que Lula assumiu, 43 ONGs que têm alguma ligação com o movimento sem terra já receberam R$ 152 milhões. Em seu site, a ONG “Contas Abertas”, estampa também a manchete: “Governo repassa 151,8 milhões a “entidades ligadas ao MST”, ... “muitas acusadas de cometer” ... “graves irregularidades”.

O levantamento por eles procedido dá conta de 43 entidades “ligadas ao MST”. O texto explica que entre 2001 e 2009 foram celebrados quase 1.000 convênios (com todos os tipos de entidades). Como entidades “conhecidas por suas ligações com o MST” estão citadas a ANCA que recebeu 22,3 milhões entre 2002 e 2009, a CONCRAB com cerca de 14 milhões, o ITERRA com quase 10 milhões etc.. Mas na lista aparece também entidade como a “Cáritas Brasileira” que pelo que se sabe é organismo da CNBB. Estas 43 entidades receberam entre 2003 e 2009, os 151,8 milhões. Até aí verdades ... mas, “incompletas”.

As manchetes e textos, por não produzirem uma informação completa, induzem qualquer leitor a pensar que estas entidades são criminosas ou, no mínimo, muito suspeitas de graves crimes; e obviamente, o governo Lula é o cúmplice. Esqueceram de informar, por exemplo, para qual finalidade estes recursos foram repassados; esqueceram de dizer que estes recursos foram ou devem ter sido usados (até prova em contrário) para realizar ações concretas nos assentamentos de reforma agrária; por óbvio: se este dinheiro tivesse sido desviado, a liderança das ONGs e os lideres do MST teriam sido “crucificados” pelos próprios assentados e não se tem noticia disto.

Esqueceram de informar que, dos inúmeros processos instaurados (desde o Governo FHC) pela CGU, pelo TCU, ou pelo MP contra algumas destas entidades “acusadas de cometer graves irregularidades” (inclusive da CONCRAB e o ITERRA), 99% dos mesmos já foram encerrados (ou estão sendo encerrados) por não ter sido constatada a existência de qualquer tipo de desvio ou de malversação do dinheiro público.

E é bom lembrar que para o TCU um desvio é, por exemplo, usar um recurso para comprar “material de consumo” quando no convenio se programou comprar “material permanente”. Já houve condenação de Prefeito por ter construído 15 Km de esgoto quando o convenio estabelecia a meta de 10 Km. Isto sem contar com o “espírito de protógenes” que “baixa” em muitos dos auditores do TCU e da CGU que vêem “crimes gravíssimos” baseados em suas suspeitas e ilações de todo tipo que, após exame independente (em geral do judiciário) se mostram absolutamente insubsistentes.

Esqueceram de dizer que na lista de casos que eles estudaram e “demonstraram” a existência de ligações entre algumas entidades e algumas lideranças do MST incluem convênios desde 2001, e que com aquelas entidades a soma dos valores conveniados atinge 74 milhões (e não 151,8). E óbvio, esqueceram também de lembrar ao leitor o fato que não é pecado nem crime ser líder do MST ou de uma entidade ou ser líder do MST e dirigente de uma entidade ao mesmo tempo.

É público e notório que existem, no mínimo, 230.000 assentados (período FHC e Lula); no mesmo período, 24 milhões de hectares desapropriados. Por outro lado, o MST reconhece que está organizado em 24 estados e segundo ele, existem cerca de 130.000 acampados e 370.000 assentados (parte dos quais tiveram origem nas ações do MST e com os quais, provavelmente, o movimento e suas lideranças mantêm articulação). Esqueceram de informar que isto não é nem infração nem crime.

Esqueceram de anotar (em nome da “transparência” e das “contas abertas”), que 152 milhões divididos por “mil convênios” resultam em média, pouco mais de R$150.000 por convenio; que este valor foi repassado durante sete anos, o que significa pouco mais de 21 milhões/ano, para atender centenas de assentamentos de reforma agrária distribuídos em 27 estados do País.

Se “contas abertas” tivesse observado também os acordos do INCRA com governos estaduais (e as EMATER, entidades públicas dos estados), veriam que o custo anual por família assistida (para atividades semelhantes as desenvolvidas pelas ONGs “ligadas ao MST”) é de cerca de 120-150 reais (média). Se o governo fosse “conveniar” (pagar a EMATER), teria gasto então cerca de 370.000 x 130 = 48 milhões por ano (só para atender os assentamentos originados nas lutas do MST). Ainda que limitássemos nossas estimativas aos assentamentos do período FHC-Lula (230 mil famílias), o valor de ATER alcançaria 29,9 milhões/ano.

Além disto, não mencionam que muitos dos convênios celebrados (com estados ou ONGs) incluem também transferência de recursos para investimentos em agroindústrias, instalação de ilhas digitais, a construção de infraestruturas individuais ou coletivas (incluindo escolas), máquinas e equipamentos de uso comum nos assentamentos, o que pode elevar este valor médio a mais de R$ 1.000,00/família. Fica claro que não há muito espaço para corrupção (a não ser que os custos das EMATER estaduais estejam também superestimados para fins de corrupção).

Finalmente, a terminologia utilizada tanto pela Folha quanto pela ONG desinforma; é imprópria e hostil. Levantam suspeitas de modo insidioso: “apresentam fatos” (só “metade das verdades”) e deixam a impressão de que existe uma quase “conspiração” ou a “formação de quadrilha” para assaltar os cofres públicos e financiar atividades ilícitas.

Para comprovar as “ligações entre o MST e as entidades” mencionam nomes de pessoas “citadas” como dirigentes do MST e ligadas às entidades” (ou vice versa). Numa lista de seis páginas (com todos os convênios celebrados), tem perolas do tipo “citado pelo relatório da CPMI pelo Dep. Lupião, como dirigente da CONCRAB”, como se isto fosse algo “perigoso”, criminoso (ou quase).

Ora se a pessoa é dirigente de uma organização, é facilmente comprovável por atas e registros. Mais ainda: se a CONCRAB têm convênios assinados com o Governo, o nome dos seus dirigentes deve constar nos processos e nos acordos. Ao colocar que a vinculação foi “citada pelo Dep. Lupião” (relator de uma CPI!), deixa transparecer, levanta a suspeita, que a informação estava “escondida”, muito provavelmente, e, no contexto das acusações, com “segundas intenções”. Sem contar que entre nomes “citados como dirigentes” reconheci um que é especialista famoso em estudos da Bíblia.

Ora não é porque a ONG “Contas Abertas” tem seu site na UOL, recebe apoio financeiro da UOL e trabalha seguidamente com jornalistas da Folha, que ela pode ser acusada ou caracterizada como sendo “vinculada” ao grupo Folha (ou acusada de manter, com este grupo, atividade “suspeita” ou “imprópria”). Usando a lógica dos responsáveis pela matéria, esta “vinculação” estaria “evidente” (comprovada inclusive pela ligação com a rede internet[1]) e permitiria a qualquer um perguntar a quem serve “contas abertas?”. Mas eu reconheceria também que não é crime “manter vinculações com o grupo Folha”.

Muitas entidades foram constituídas e são ligadas aos movimentos sociais aos assentamentos que incluem assentados de origem do MST, mas também de uma dezena de outros movimentos e sindicatos/federações de sindicatos, além dos “assentados” de projetos de colonização, regularização fundiária etc. E estas entidades existem porque há uma luta já antiga pela reforma agrária (que não é exclusiva do MST) e também porque os governos dos últimos 10-15 anos (pré-Lula) decidiram que este tipo de trabalho (assistência aos agricultores pobres) deveria ser descontinuado (ou privatizado).

Nunca havia lido uma peça de desinformação tão completa.

A Folha e a ONG “Contas Abertas” se prestaram a um trabalho de desqualificação e criminalização de entidades. Faz coro com o “denuncismo” conservador. Pode ter sido imperícia. Podem ter ganhado pontos com a oposição ao governo atual e junto aos grupos conservadores que querem impedir avanços sociais. Perde a cidadania que passa desacreditar em tudo, inclusive de si mesma. Perderam com aqueles que acreditam ainda em jornalismo sério. Mas – o pior – é que, como o tempo vai desmenti-los, todos terão perdido. Pena.

[1] É irônico, pois para comprovar a “vinculação” do MST com uma entidade, os autores da matéria citam prestação de serviços por abrigar site, ou menção de apoio no site do MST.