quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O monstro do Obama, do blog do Azenha...

Obama pariu um monstro

Atualizado em 17 de dezembro de 2009 às 19:07 | Publicado em 17 de dezembro de 2009 às 18:59

O sonho das companhias seguradoras

Abortem a reforma de saúde dos democratas

por DAVE LINDORFF*, no Counterpunch

Que seja dado crédito a Howard Dean. Ainda médico, o ex-governador de Vermont, ex-presidente do Partido Democrata e ex-candidato presidencial democrata pediu a membros progressistas do Congresso nas duas casas que se juntem a seus colegas republicanos para matar o que ele apropriadamente chama de "sonho das companhias seguradoras". 

Esses autodenominados progressistas do Partido Democrata, que alegam que a reforma do sistema de saúde ainda pode ser salva com a inclusão de uma "opção pública" falsa, cuidadosamente circunscrita e capada, que no máximo ofereceria cobertura ruim por um preço alto a um pequeno número de autônomos pobres, estão errados. Essa suposta tentativa de reformar o sistema de saúde -- o mais caro e menos eficaz do mundo desenvolvido -- é impossível de salvar.

[Nota do Viomundo: Originalmente, a opção pública deveria permitir que o governo federal dos Estados Unidos competisse com a iniciativa privada na oferta de planos de saúde. Seria a adoção, pelos Estados Unidos, de uma espécie de SUS]

O único lugar apropriado para a lei a essa altura é a lata do lixo.

O que poderia ser um momento transformador da política dos Estados Unidos -- o fim de décadas de um sistema de saúde corporativo e a criação de um sistema que garantisse a todos os estadunidenses cuidados de qualidade e financeiramente acessíveis como um direito básico da cidadania, da mesma forma que existe no Canadá, em todos os países da Europa, no Japão, em Taiwan, em Cuba e na maior parte do restante do mundo, esse momento foi desperdiçado.

Foi desperdiçado pelo presidente Obama, que não teve coragem de assumir o papel de liderança e deixou o assunto por conta do Congresso e que em seguida cedeu aos grandes jogadores do complexo médico-industrial e fez acordos secretos com todos eles -- médicos, companhias seguradores, companhias farmacêuticas e a indústria dos hospitais -- em troca de "apoio".

Foi desperdiçado por muitas lideranças do Congresso nas duas casas, especialmente por aqueles que se intitulam democratas Blue Dog, mas também pelos que se definem como "liberais", que aceitaram o dinheiro sujo dessas indústrias (os lobistas delas invadiram o Congresso no último ano, com quantias sem precedentes de contribuições de campanha), que transformaram a legislação em uma gigantesco presente para essas indústrias, produzindo uma lei que deixará os empregadores no papel de agentes do seguro de saúde (embora eles não paguem por isso, será responsabilidade dos empregados pagar), que exige que os que não tem seguro de saúde obrigatoriamente comprem planos, garantindo para a indústria um vasto novo mercado, especialmente de jovens saudáveis; uma lei que quase nada vai fazer para controlar os custos. 

Os médicos vão enriquecer com essa "reforma". As companhias seguradoras vão enriquecer muito mais com essa "reforma". As companhias farmacêuticas vão enriquecer com essa "reforma". Mas milhões de pessoas vão continuar sem acesso à saúde. Haverá dezenas de milhões que conseguirão acesso a planos de baixa qualidade ou, pateticamente,  lixo médico.

E o custo da saúde, tanto para indivíduos quanto para a sociedade como um todo, que já é o mais alto do mundo, vai continuar a crescer. Para piorar ainda mais, os impostos vão aumentar de forma dramática, cerca de 100 bilhões de dólares por ano. Para dar uma risadas extras, enquanto esses custos vão começar a atingir o público imediatamente, os "benefícios" da lei não começam antes de 2013, o que significa que um Partido Republicano renovado, depois de tirar Obama da Casa Branca e de acabar com a maioria democrata no Congresso em 2012, acabaria com o plano [antes que ele entrasse em vigor].

O sr. Dean está certo. É uma lei ruim. Mas não apenas. É moralmente ultrajante, politicamente desastrosa e economicamente perigosa. Move o país no caminho errado -- não no caminho do "socialismo" que a direita tem denunciado, mas em direção a um caminho corporativo custoso que será mais difícil ainda de reformar no futuro.

Há apenas uma esperança e essa é de que haja integrantes liberais nas duas casas do Congresso em número suficiente para reconhecer que não fazer nada é o melhor nesse caso e que em defesa de seus eleitores se neguem a dar apoio a essa monstruosidade legislativa.

O Health Insurance Enrichment Act of 2009 deve ser morto no útero congressista antes de emergir como o monstro que se tornou.

A única coisa positiva que posso ver nesse fracasso é que talvez o presidente Obama leve um bofete de seus apoiadores mais ardentes no que ele disse ser seu objetivo legislativo número um, que ele e seus meio-assessores "brilhantes" caiam na real e assumam que é preciso dar uma guinada de 180 graus no caminho que adotaram para tentar governar.

O mais provável, no entanto, é que essa derrota será o começo do fim do governo de Obama, que agora se revelou sem princípios, incapaz de liderança e envolvido pelos interesses corporativos mais cínicos e egoístas.

*Dave Lindorff  é jornalista e colunista na Filadélfia

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Andrade, o “orfeu das pranchetas”

Do Blog do Nassif:

Por Divagante

Nassif,

Remeto abaixo link de um maravilhoso texto em homenagem ao "Orfeu das Pranchetas": Andrade, que poderá se consagrar o primeiro técnico negro campeão brasileiro.

O ORFEU DAS PRANCHETAS

Fabrício Carpinejar

O Campeonato Brasileiro de 2009 escreve o derradeiro capítulo do livro "O Negro no Futebol Brasileiro", de Mário Filho, clássico de 1947 do irmão de Nelson Rodrigues.

O palco do épico curiosamente será o Maracanã neste domingo (6/12), no duelo entre Flamengo e Grêmio. No Maracanã, justo no estádio batizado de Mário Filho, o nome do escritor. Uma coincidência emocionante.

O protagonista é o mineiro Jorge Luís Andrade da Silva, o Andrade, ex-jogador do Mengo da geração vitoriosa dos anos 80, que formou uma das armações mais compactas e habilidosas do Brasil, ao lado de Zico e Adílio.

Andrade poderá ser o primeiro técnico negro campeão brasileiro. Foram raros, foram poucos os que regeram a casamata do estádio. Ele põe fim ao apartheid da última hierarquia do esporte. Até o exército foi mais justo antes.

Não há negros no comando dos nossos principais times. Existem preparadores físicos, assistentes, dirigentes. Mas nunca existiu um negro mandando numa grande esquadra, organizando taticamente o elenco, dando a palavra final sobre a escalação. É como se ele pudesse chefiar com a bola nos pés, não fora do campo. Como se o negro fosse um operário, vetado como engenheiro, proibido como arquiteto das emoções das arquibancadas. Como se relegasse ao negro o papel de ator, não permitindo seu desempenho como cineasta, barrando a função autoral e a inteligência operística.

Mesmo depois de Leônidas, Zizinho, Domingos da Guia, Didi, Garrincha e Pelé, o negro era um tabu como treinador dos maiores clubes. E pensar que a mudança demorou a acontecer nas planilhas. Dentro de campo, estava resolvida na década de 50. Segundo Mário Filho, o futebol passou por três grandes fases: 1900/1910 (elitização), 1910/1930 (exclusão de negros; Vasco é o primeiro time a adotá-los e lutar contra a discriminação) e 1930-1950 (ascensão social dos negros e liberdade racial).

Está caindo o último bastião do racismo no país. Acabaram as restrições.

Andrade é o Orfeu das pranchetas. Realizou uma revolução no vestiário, uma revolução de abrigo, só comparável à grandeza heroica de um Pelé fardado. Desde 2004, espera sua chance de efetivação no Flamengo. Já salvou o time da degola como interino, já foi suplente diante das demissões de Celso Roth, Joel Santana e Ricardo Gomes. Durante cinco anos, engoliu sapos, recompôs diplomaticamente suas frustrações e expectativas, aceitou passivamente os interesses das bolsas de valores. O folclore conta que Cuca o colocava para completar a barreira nos treinos, durante a cobrança de faltas.

Andrade é o principal personagem. Não será Petkovic ou Adriano. É ele. Com seu temperamento discreto, abalou a onipotência dos supertécnicos como Luxemburgo e Muricy, mostrando que altos salários não significam sucesso. É o gracioso urubu no meio das garças à beira do gramado. Abre passagem a uma nova geração de estrategistas das categorias de base. Indica que os responsáveis pela entressafra alcançam fartas colheitas. Não briga com a imprensa, não grita mais do que o normal, não arma segredos de Estado, não se escandaliza com as críticas. Difere do tom casmurro e embirrado de parte dos seus colegas e da histeria autoritária das estrelas de terno e gravata. Não é paranóico, não se vê perseguido e injustiçado nas coletivas. Tem samba no sangue, uma alegria mansa, um amor antigo pelas redes. É resolvido o suficiente para suportar qualquer pressão. Escuta mais do que fala. Porta-se com a audição de um juiz, longe da tradicional oratória de um promotor. Não é por acaso que faz acupuntura nos ouvidos.

Ao assumir o comando em julho, Andrade retirou o rubro-negro de baixo da tabela, conseguiu um aproveitamento de 72,5% em 17 jogos.

Mário Filho deve encontrar agora uma posição confortável no túmulo. Graças a Andrade, lavamos definitivamente o pó-de-arroz da pele.

sábado, 14 de novembro de 2009

Nygaard, via Blog do Azenha: "Ameaça iraniana”? Onde?

"Ameaça iraniana"? Onde?

Disponível em http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/ameaca-iraniana-onde/

Atualizado e Publicado em 13 de novembro de 2009 às 12:05

 por Jeff Nygaard, Counterpunch

 O real significado da atual histeria sobre as armas nucleares iranianas está quase completamente ocultado sob a propaganda oficial. O melhor primeiro passo no esforço para escapar das versões de propaganda é considerar os países que já têm armas nucleares; o segundo é analisar o mapa do Sudeste da Ásia.

 Oito nações no mundo conhecido possuem armas nucleares. Todas são próximas do Irã, seja literalmente próximas ou próximas em sentido imperial. Cinco delas – China, França, Rússia, Reino Unido e EUA – são signatárias, oficialmente, do Tratado de Não-proliferação de Armas Nucleares [ing. Nuclear Nonproliferation Treaty, NPT], descrito como "principal marco do regime global de não-proliferação". Três estados – Índia, Israel e Paquistão – também têm armas nucleares, mas não são signatárias do Tratado de Não-proliferação. E Israel "não admite nem nega ter armas nucleares", segundo a Associação de Controle de Armas [ing. Arms Control Association], mas todo mundo sabe que Israel tem arm as nucleares; só não se sabe se são 200 ou 300 ou mais.

Consideremos então nosso mapa do Irã. Imagine-se um cidadão iraniano que olha à volta, para saber de que lado precaver-se contra alguma ameaça – nuclear ou outra. O que veem os cidadãos iranianos?

Imediatamente a oeste do Irã, está o Iraque, efetivamente sob controle dos EUA ("próximo", em sentido imperial, é isso). As atividades secretas dos EUA orientadas para desestabilizar outros países muito frequentemente usam como base de operação as embaixadas norte-americanas; e os EUA construíram no Iraque "as maiores e mais caras instalações de todos os tempos para sua embaixada", segundo o Christian Science Monitor. Segundo o New York Times de 9/10, "Os norte-americanos esperam que, na próxima primavera já estarão operando no Iraque a partir de seis super bases e 13 bases menores."

Imediatamente a leste do Irã, estão Afeganistão e Paquistão. O Paquistão é dos principais aliados dos EUA, embora sempre errático; e tem seu próprio arsenal nuclear, sem qualquer regulação ou supervisão. Do mesmo modo que o Iraque a leste, o Afeganistão também é base das atividades imperiais dos EUA, mesmo que ainda não esteja sob total controle dos norte-americanos. Enquanto o governo Obama discute oficialmente o que fazer, "A CIA está deslocando para o Afeganistão equipes de agentes, espiões, analistas e pessoal paramilitar, parte de um amplo movimento de 'avanço' dos serviços de inteligência, que converterá a base instalada naquela região em uma das maiores de toda a história da agência", segundo declarações de funcionários." – Isso se leu no Los Angeles Times de 20/9 passado.

Vê-se claramente que a embaixada que terá "as maiores e mais caras instalações de todos os tempos" está instalada exatamente a oeste do Irã; e que "uma das maiores bases de toda a história da CIA" também é vizinha do Irã, a leste. Evidentemente, aí estão todos os meios para executar as repetidas ameaças que os EUA têm feito ao Irã. Os EUA não se cansam de dizer "que todas as alternativas estão sendo analisadas", palavreado que corresponde, no código da guerra, a bem clara ameaça de ataque militar.  Não bastassem essas ameaças, o único Estado nuclear do Oriente Médio – Israel – também jamais se acanha de ameaçar o Irã. Manchete incansavelmente repetida, por exemplo nos programas noticiosos da CBS, dizia essa semana que "Israel provoc a os EUA para que ataquem o Irã."  Dia 5/7, a Associated Press noticiou que "o vice-presidente Joe Biden assinalou que o governo Obama não criará obstáculos se Israel decidir atacar as instalações nucleares do Irã."

Além dos países que mantêm sob ocupação, os EUA têm outras instalações de interesse militar, praticamente à volta do Irã. Não só no Iraque e no Afeganistão, mas também na Turquia, outro país que faz fronteiras com o Irã. Várias grandes bases militares dos EUA (cerca de meia dúzia, no mínimo) existem também na Arábia Saudita, na outra margem do Golfo Persa e nos Emirados Árabes Unidos – a cerca de 160-300km de distância do Irã. Outra vez, podem-se medir as distâncias no mapa. 

E não se pode esquecer de incluir nesse contexto a gigantesca base dos EUA no Oceano Índico, na ilha de Diego Garcia, base à qual John Pike, da GlobalSecurity.org, refere-se como "a mais importante unidade militar dos EUA". Essa base, usada como campo secreto de prisão e tortura, e como base de lançamento de ações terroristas contra o Iraque e o Afeganistão, leva o estranho nome de "Campo Justiça" [ing. Camp Justice]. O território do Irã pode ser rapidamente alcançado pelos bombardeiros e mísseis dos EUA estacionados em "Campo Justiça".

O mundo às avessas

No mundo imperial, detenções ilegais e tortura são consideradas 'justiça'. E muitos outros valores são também completamente invertidos, quando se trata de 'noticiar' os movimentos pelos quais o 'império' norte-americano se mantém.

Dia 28/9, o Irã anunciou que testara alguns mísseis; e que "os mísseis iranianos podem alcançar qualquer alvo, em qualquer local de onde parta qualquer ameaça contra o Irã." Matéria da Associated Press sobre esses testes levava a seguinte manchete: "Testes de mísseis iranianos fazem aumentar as preocupações." As "preocupações" teriam aumentado, segundo a AP, porque "várias bases militares dos EUA no Oriente Médio" [passavam a ficar] "ao alcance dos mísseis iranianos".

Nesse mundo às avessas, defender-se passou a ser agressão, porque quem se defenda 'cria preocupações' para os agressores.  Basta pensar um pouco:

A principal superpotência mundial mantém bases militares em todo o planeta (são mais de 700!), inclusive nos dois países atualmente sob ocupação dos EUA. Essa Superpotência possui cerca de 10.000 ogivas nucleares; continua a ser o único país do planeta que, até hoje, detonou armas atômicas em cidades populosas, matando e mutilando milhões; e é ainda a mesma Superpotência que, em 1953, derrubou o governo democraticamente eleito no Irã. 

Localizado entre os dois países atualmente sob ocupação dos EUA, e cercado por todos os lados por bases militares norte-americanas, o Irã está, isso sim, lutando incansavelmente para conquistar capacidade técnica para defender-se contra os ataques da superpotência cujas instalações militares já praticamente cercaram seu território. E é o Irã que se defende – não a sangrenta história de ocupação e violência dos EUA em todo o mundo (e naquela região) – que "faz aumentar as preocupações" da Associated Press! O Irã não desencadeou nenhuma guerra na história moderna – como bem observou o professor Juan Cole. De fato, as preocupações "aumentam", porque está crescendo a capacidade de defesa de um Estado que os EUA ainda não conseguiram subordinar.

E aquele padrão 'midiático' repete-se incansavelmente. Por exemplo, em matéria divulgada pela agência UPI, dia 25/7. O lead dizia: "Irã bombardeará instalações nucleares de Israel, se Israel atacar o Irã, disse sábado o líder da Guarda Revolucionária Iraniana." Lead normal e acurado. Mas lá estava, em letras garrafais, a manchete aterrorizante: "General iraniano ameaça instalações nucleares israelenses."

O Irã sabe bem que a mais recente vítima de ataques militares e ocupação pelos EUA é o Iraque, nação com baixa capacidade de defesa; ao mesmo tempo, a Coreia do Norte, que já testou vários mísseis nucleares e tem reconhecida capacidade nuclear, continua sem ser atacada militarmente.

Irã irracional? Parece que não.

Desde 1979, o Irã tem sido apresentado aos cidadãos norte-americano como inimigo dos EUA; em meses recentes, abundam notícias sobre "a ameaça iraniana". Mas o Irã foi um dos principais aliados dos EUA, antes de 1979.  Para R.K. Ramazani, professor emérito da Universidade de Virginia, "até a Revolução Iraniana, os EUA, de fato, confiaram cegamente que o Irã faria as vezes de "guardião" da região do Golfo. Evidentemente, nada há de inerentemente 'anti-EUA' no Irã."

Se o Irã é hoje uma ameaça aos EUA – e tudo que o governo dos EUA diz e faz indica que, sim, os EUA veem o Irã como uma ameaça – qual, então, seria a natureza dessa ameaça? Serão, mesmo, as armas nucleares? Parece-me pouco provável, por várias razões, algumas das quais discuto adiante.

 O prof. Subhash Kapila, especialista do South Asia Analysis Group, publicou artigo, em 2006, no qual diz claramente que "com armas nucleares ou sem elas, o Irã jamais terá meios para oferecer resistência efetiva contra o poderio bélico dos EUA" – ideia que se confirma facilmente, se se consideram as informações acima, sobre bases militares dos EUA na Região.

Kapila diz também que "O principal impulso estratégico que modela a percepção de que o Irã implicaria algum tipo de ameaça aos EUA é a emergência do Irã como potência regional na Região do Golfo – com vários efeitos sobre os interesses nacionais dos EUA na mesma região."

Gregory Aftandilian, assessor do Congresso para política exterior, acrescentou à discussão um aspecto que raramente se ouve considerado nos EUA: "o Irã não é estúpido a ponto de atacar Israel. (...) É Estado que tem milhares de anos, uma longa história. Teerã não pratica diplomacia de suicídio."

John Negroponte, em depoimento na Comissão de Inteligência do Senado, quando era diretor do Serviço Nacional de Inteligência, em 2006, foi mais diretamente ao ponto. Para ele, "o poder militar convencional do Irã é considerado uma ameaça aos interesses dos EUA. O Irã está ampliando sua habilidade para proteger o próprio poder militar; nessa medida, ameaça a eficácia das operações dos EUA na Região – potencialmente intimidando aliados regionais de cuja solidariedade depende a eficácia das políticas norte-americanas –, e fazendo aumentar os custos da presença dos EUA e de seus aliados na Região.

"Teerã também continua a apoiar vários grupos terroristas, por considerar que esse apoio é crítico para a proteção do regime, porque aqueles grupos opõem-se a EUA e Israel, contribuem para conter ataques israelenses e norte-americanos, enfraquecem Israel e aumentam a influência do Irã na Região, por efeito da intimidação. O Hizbóllah libanês, principal aliado do Irã dentre os grupos terroristas – embora focado numa agenda nacional libanesa, e apoiando uma rede de terroristas palestinos –, mantém vasta rede mundial de contatos e é capaz de organizar ataques contra os interesses dos EUA, se sentir que seu parceiro iraniano esteja sob ameaça. 

Vale observar que, nesses discursos, "a ameaça iraniana" assume duas formas. Uma, a capacidade para contrariar "interesses dos EUA". A outra, a competência para conter "ataques dos EUA e de Israel", vale dizer, "competência [do Irã] para se autodefender".

Outro fato que torna ainda mais inverossímil que os estrategistas norte-americanos estejam realmente preocupados com bombas nucleares iranianas é a evidência de que os líderes religiosos já impuseram, há anos, proibição total de armas atômicas. Em declaração do governo iraniano à Agência Internacional de Energia Atômica, em 10/8/2005, lê-se: "O líder da República Islâmica do Irã, Aiatolá Ali Khamenei emitiu Fatwa que proíbe a produção, armazenamento e uso de armas nucleares; nos termos dessa Fatwa, o Irã jamais terá armas atômicas." Não há como duvidar da eficácia dessa Fatwa, se se acredita no que dizem os jornais – que Khamenei é o líder supr emo e real poder no Irã (embora o presidente Ahmedinejad ocupe todas as manchetes).

Nada, de fato, faz muito sentido: os mais irados disseminadores do medo ante a 'ameaça' iraniana baseiam sua propaganda, em parte, num alegado fanatismo religioso das lideranças iranianas. Mas uma Fatwa de Khamenei, nesse caso, não seria prova suficiente de que não há qualquer ameaça das 'armas nucleares iranianas': para dois pesos, duas medidas? 

Resumidamente, se pode dizer que:

1.  Não há qualquer evidência de que o Irã esteja realmente produzindo armas nucleares;

2.  Se o Irã planejasse produzir armas nucleares, nada haveria de irracional ou 'fanático' nessa ideia, dada a gravidade das ameaças que realmente cercam o país e contra as quais é racional que o Irã procure defender-se. E ainda que a máxima irracionalidade esteja nas próprias armas nucleares, sempre haverá mais bombas atômicas irracionais em Israel e nos EUA, do que no Irã; e

3. Se o Irã de fato estiver buscando construir armas nucleares e vier a ter sucesso, a probabilidade de que essas armas sejam usadas para fins ofensivos é praticamente igual a zero.

Se se aceitam as premissas acima, é preciso buscar outra causa, diferente da chamada "ameaça nuclear iraniana", para explicar a histeria anti-Irã que toma conta dos EUA.

O "jogo" – como dizem os geoestrategistas do 'império' norte-americano – consiste em defender o espaço privilegiado de um único poder regional. Só há lugar para um país-'líder', que modele os eventos na Região e, pelo menos, tenha poder para vetar ações intentadas por outros Estados. Os EUA querem reservar para eles mesmos esse espaço e esse posto – em parceria com seu Estado-cliente, Israel. A verdadeira "ameaça iraniana", portanto, advém de o Irã – aos olhos dos estrategistas dos EUA – ter ou parecer ter potencial para realmente ameaçar a hegemonia da dupla EUA-Israel na Região.

O bizarro mundo que, para os norte-americanos 'informados' pela mídia, seria o Oriente Médio é mostrado como mundo às avessas, porque é indispensável manter ocultados os objetivos imperialistas dos EUA para toda aquela Região. Assim, é útil manter os cidadãos norte-americanos hipnotizados de medo ante uma "ameaça iraniana" que seria consequência de antiamericanismo fanático ou de fanatismo religioso. Ante tal inimigo, a única via razoável a considerar seria manter-se em guerra, sempre a postos para "atacar preventivamente" inimigo tão perigoso.

O trabalho do sistema de propaganda dos EUA para o Oriente Médio opera para criar uma percepção de que o mundo é local perigoso, cheio de armadilhas e ameaças. Por isso há "a ameaça iraniana" e a "ameaça terrorista", exatamente como, antes, houve a "ameaça comunista". O custo para manter o império norte-americano é muito alto, e só cidadãos aterrorizados aceitariam desperdiçar quase 700 bilhões de dólares num único ano, para manter exércitos de ocupação, como aconteceu em 2009. Esse número, já muito alto, sobe à estratosfera se se incluem os gastos com veteranos, com os programas especiais, com ajudas a países-parceiros nas guerras, com juros de dívidas de guerras passadas, e a lista é longa. O império é empreitada caríssima – e o medo, por isso, tem de ser correspondentemente imenso. 

É importante que os norte-americanos aprendamos a ver o mundo como o mundo é, não às avessas; que aprendamos a identificar corretamente as ameaças que crescem à nossa volta. O Irã, os iranianos e suas armas nucleares com certeza não estão incluídos nessa lista de ameaças e 'perigos' reais.

Jeff Nygaard é jornalista e ativista em Minneapolis, Minnesota. Publica um e-jornal de livre distribuição, Nygaard Notes 

Traduzido pelo coletivo Política para Todos

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Depois me vêm com essa babaquice de que o Lula mudou a politica econômica...

Excelente postagem do blog do Nassif.

http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2009/11/13/eles-quase-quebraram-o-pais/#more-38535

É importante destacar que eu não ignoro os avanços pontuais do atual governo, mas tambem não adianta tapar o sol com a peneira...

Da mesma forma que a burguesia criticava a experiência do socialismo real por ser um sistema de partido único, nenhuma democracia com apenas dois partidos relevantes pode ser considerada uma democracia efetiva.

Eles quase quebraram o país

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Henrique Meirelles, Mário Torós e Mário Mesquita, do Banco Central.

Belíssima matéria de Cristiano Romero e Alex Ribeiro, no Valor de hoje, sobre a corrida bancária na crise do ano passado. Some-se a matéria de ontem da Raquel Ballarin sobre o ataque especulativo de que foi alvo o Unibanco, no mesmo período (clique aqui para ler a matéria).

O curioso da matéria é que ela foi feita em cima de Mário Torós, personagem central da crise, com ele relatando como quase salvou o país. Irresponsáveis que quase jogam o país na maior crise da sua história.

Toda essa jogatina desenfreada, patrocinada pelo BC, foi relatada aqui no Blog.

Primeiro, o banco permitiu a apreciação desmedida do real.

Depois, para compensar os grandes exportadores, instituiu o "swap reverso", uma excrescência que permitia aos exportadores ganhos financeiros sempre que o real se apreciava. Ou seja, perdiam no operacional, mas ganhavam no financeiro. Com isso, o BC colocava todas as forças da economia – mercado financeiro e grandes empresas exportadoras, na mesma linha de apreciação da moeda. Quem bancava o ganho financeiro da especulação? O BC, é claro. Ou, melhor, o Tesouro. Ou melhor, todos os contribuintes.

No dia 3 de junho de 2008 – antes da crise, portanto – na coluna "O escândalo do swap reverso" alertei para essa leviandade:

O Ministério da Saúde está em uma luta insana para obter R$ 20 bilhões adicionais, que garantiriam a universalização do acesso a medicamentos no pais.

Do ano passado a maio deste ano, a mesa de operações do Banco Central, com apenas uma operação – o "swap reverso", operação no mercado de derivativos — deu um prejuízo de R$ 10 bilhões ao Tesouro, e um lucro correspondente ao sistema bancário.

(…) Suponha-se a situação inversa: uma crise cambial que provocasse uma enorme desvalorização do real. Pelas quantias envolvidas no "swap cambial" haveria o risco concreto de uma crise sistêmica, obrigando o BC a intervir no mercado para salvar as instituições. O BC está agente de criação de futuros riscos sistêmicos.

É bom que os operadores do BC se dêem conta. Estão atuando contra o Estado brasileiro, queimando dinheiro público. Essa operação tem contornos que permitem desde a abertura de uma CPI até de um inquérito por parte do Ministério Público.

O BC criou o epicentro desse jogo especulativo com derivativos. Induziu todos os grandes grupos nacionais não-financeiros a entrar nesse jogo. No rastro, grandes bancos estrangeiros trouxeram operações similares com derivativos internacionais. Criou-se uma jogatina desenfreada. Quando a crise explodiu, as incertezas quanto ao tamanho do rombo ameaçaram arrastar todos de roldão, não apenas bancos pequenos e médios, muito alavancados, mas até o Unibanco – conforma mostrou a matéria da Raquel Ballarin – apesar de sua posição sólida.

Mesmo nesse quadro de intenso tiroteio, esses irresponsáveis ainda seguraram os juros nas alturas. Aliás, a matéria conta que Henrique Meirelles quase foi demitido – o que absolve a Carta Capital da capa que fez dando conta de sua demissão.

O que era para dar margem a uma CPI, a um inquérito da Polícia Federal e do Ministério Público, vira uma auto-louvação na boca dos dois Mários – os mesmos que, em sucessivas entrevistas em off para o mesmo Valor – ameaçaram o governo com demissão coletiva em plena crise. Se não fosse a atuação rápida da Fazenda, a crise teria sido um terremoto, e não uma marola.

Mereciam duas medalhas: um inquérito do MPF por irresponsabilidade na condução da política monetária; e um troféu Burrice por virem, agora, chamar a atenção pública para sua irresponsabilidade.

Desde fins de 2007 vinha alertando aqui que a política cambial era o maior fator de risco do governo Lula. Espero que aprenda para 2010.


quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Do blog do Nassif: Um dia sem eletricidade

Um dia sem eletricidade

Por Francisco

http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2009/11/11/um-dia-sem-eletricidade/#more-38338

Eu gostei do apagão.

Foi maravilhoso olhar pela janela e perceber a completa ausência de aparelhos de televisão ligados num raio de muitos quilômetros.

Ninguém gritando gol, ninguém chorando o drama da novela que reconta a mesma história pela enésima vez. Ninguém olhando para seu eletrodoméstico favorito com a expectativa de quem aguarda o fato que mudará sua vida. Nenhum jornalístico televisivo anunciando em tom dramático notícias horrendas escolhidas a dedo para instilar o mais absoluto pavor nas mentes de todos. Ninguém fazendo da televisão uma companhia permanente, repetindo de tal forma o hábito a ponto de torná-lo um vício. Ninguém sacudindo a perna, esperando ansioso o intervalo comercial para fazer xixi.

Silêncio, que beleza. Potencializado pela introspecção, tão necessária mas tão rara, ocasionada pela escuridão.

Também havia pessoas conversando em tom de voz adequado e pais dialogando com seus filhos, algo que talvez não ocorresse desde… quando, mesmo?

A infância num lar onde a tv ocupava o centro das atenções foi dolorosa. Quantas vezes fui dormir tomado de terror pelas reportagens que acabara de ver no Fantástico. Fora os horrorosos filmes policiais, novelas e programas de auditório. Eu não tinha escolha.

Visitar uma amiga culta, certo dia, foi revelador. Pela primeira vez estava numa casa em cuja sala não havia aparelho de tv. Estranhei a princípio, mas notei que todos conversavam e todos se ouviam. Que diferença.

Deixei de assistir tv há mais de 15 anos e não me faz a menor falta. Quanta diversidade ao meu redor, quantas amizades, idéias a compartilhar, quanta natureza, cores, flores, carinho, boa música, gentileza, arte. Quanta alegria! Eu não via, embriagado que estava pela hipnose do eletrodoméstico.

Que esse tempo sem tv possa ter sido longo o bastante para permitir a outros a tomada de consciência de que existe, sim, vida fora da telinha, e muita.

Tenho para mim que o Criador, em sua infinita sutileza, causa periodicamente essas interrupções elétricas a fim de generosamente nos oferecer oportunidade de lembrar que não existimos para passar a vida diante da televisão. Vida não é o que aparece na tv nem o que acontece às pressas durante os comerciais. Viver é muito mais.

A vida sem televisão é incomparavelmente melhor.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A pegadinha do Gogó, da CPT


Roberto Malvezzi (Gogó), na página do MST (www.mst.org.br)
 
Cutrale e a moral do "sepulcro caiado"


Faço esse texto a pedido de muitos amigos. Para muitos, o meu texto "Cutrale devolve terras griladas" fez com que muita gente acreditasse na conversão da empresa. Então, dou as devidas explicações.
 
A ocupação da Cutrale pelo MST trouxe algumas perplexidades. Eu mesmo me senti constrangido quando o movimento foi acusado de depredar e, sobretudo, de furtar objetos pessoais de funcionários da empresa. Depois, o próprio Movimento lançou uma nota pedindo desculpas de seus erros, negou a depredação e, sobretudo, o furto de alguns objetos. Achei a carta do MST bonita e convincente. Só os magnânimos têm capacidade de reconhecer seus próprios erros. O Movimento teve.
 
Entretanto, vendo a televisão e jornais, fiquei indignado com a moral farisaica que jorrou sobre o caso. Deputados, setores da mídia, profissionais da mídia, até o presidente da República, desfilaram uma onda de ataques ao movimento, mas sempre ocultando o problema mais grave, isto é, o fato da empresa ocupar área pública grilada. Foi pretexto até para uma nova CPI sobre os Sem Terra.
 
E não é só a Cutrale. O Prof. Ariovaldo Umbelino estima que cerca de 200 milhões de hectares de terras públicas, 25% do território brasileiro, estão ocupados ilegalmente. Agora esse número deve diminuir, já que o governo Lula decidiu legalizar o grilo de 67 milhões de hectares só na Amazônia. Mas, não é só ali. O Pontal do Paranapanema e outras regiões do Brasil apresentam o mesmo problema.
 
Então, todas essas acusações contra o MST me pareceram coisa típica da moral farisaica, que "côa mosquito e engole camelo", ou dos sepulcros caídos, que "estão bonitos por fora e cheios de toda podridão por dentro". Lamentar 7 mil pés de laranja e não ver a cem mil famílias que estão nas estradas, ignorar o grilo das terras, ignorar o que está acontecendo com os Guaranis no Mato Grosso, com os atingidos pelos grandes projetos, é uma moral de hipócritas, que coam mosquito e engolem elefantes.
 
Decidi fazer um texto ironizando o caso. A grande mídia rodeou o texto, telefonou, mandou e-mails, mas não mordeu a isca. Não iria repercutir um texto como esse. Muitos amigos riram na hora, até elogiaram a peça de marketing ou disseram que era mais fácil acreditar em "saci, ET de Varginha, Papai Noel, etc.". Porém, talvez por ingenuidade, ou por querer ver algo de sério acontecer nesse país, muitos acreditaram, embora seja a essência do absurdo. Quem já viu grileiro devolver terras, respeitar sem terra, reconhecer os problemas históricos dos índios etc?
 
Então, afirmo que o texto "Cutrale devolve terras griladas" é uma ficção e não podia ser outra coisa, tamanho o absurdo do conteúdo.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Tática Socialista para 2.010, Por Plínio de Arruda Sampaio

Tática Socialista para 2.010

 

Plínio Arruda Sampaio

 

O debate sobre a tática eleitoral do PSOL na eleição de 2.010 está aberto, e várias posições já estão se delineando.

A inexistência de textos oficiais das lideranças e correntes que apóiam tais posições faz com que versões desencontradas a respeito delas circulem no partido. O risco disso é desviar o debate de seus eixos concretos, o que redunda evidentemente em prejuízo para o partido. Daí porque, convém abrir um debate sobre as mesmas, a fim de contribuir para uma discussão menos vaga sobre o tema de modo a  ensejar esclarecimentos, caso alguma versão descrita neste texto não seja fiel.

O presente texto consiste, portanto, em uma análise assim como em uma proposta sobre a Tática para 2.010 – tática esta que inclui necessariamente a questão do Programa da campanha eleitoral.

A tarefa dos partidos socialistas consiste em conscientizar as massas populares. Ela varia segundo as conjunturas do processo de luta de classes. Nos tempos de pré-insurreição ou de insurreição aberta há que prepará-las para confrontar diretamente o poder da burguesia. Nos tempos de refluxo, a tarefa principal passa a ser: fazer propaganda, agitar e organizar o povo de modo a avançar o socialismo. Nesse contexto, a participação em campanhas eleitorais assume importância.

Uma campanha eleitoral consta de: Programa, Discurso, Proselitismo. A função da tática é articular essas três ações, a fim de obter o efeito pedagógico conscientizador.

A formulação do plano tático tem inicio com a identificação do eixo central da conjuntura, que, sem dúvida, é hoje, a crise do capitalismo.

Esta crise é determinante para as ações tanto da burguesia quanto do campo popular. Trata-se de uma crise sistêmica do modo de produção capitalista, agravada, a partir de 2008, pela eclosão de uma crise econômica e financeira mundial.

No Brasil, a intelectualidade burguesa tem procurado minimizar os efeitos da crise econômica no Brasil, mediante malabarismos retóricos destinados a  convencer a população de que, a despeito da crise, a economia brasileira está crescendo e continuará a crescer. O objetivo desse discurso é acalmar governo, investidores, consumidores (governo, gaste; investidores, invistam; consumidores, consumam! Não poupem!) para convencê-los de que a situação está sob controle e não há problema de governabilidade e de insolvência geral à vista.

Ora, este não é o ponto do debate, porque não é nisto que consiste a crise, e sim na perda do que resta de autonomia decisória interna; no aumento crescente da dependência externa; no distanciamento tecnológico; na destruição acelerada dos recursos naturais, e, sobretudo nos seus devastadores efeitos em termos de destruição do tecido moral do Estado; de aprofundamento e perpetuação da pobreza; de descontrole da violência do Estado; de divisão e criminalização dos movimentos sociais; e no aumento da violência criminosa contra a população trabalhadora.

Tudo isto faz parte de um processo, hoje em adiantado estágio, de regressão neocolonial - processo este que não se limita ao econômico e ao social, mas destrói com igual virulência o sentimento de identidade nacional, o sentido da coesão social, a moral individual e pública.

A crise e o processo de regressão colonial impõem uma disciplina social ainda mais rígida do que atualmente sobre os pobres, os trabalhadores, os movimentos populares. O projeto de superação da "democracia restrita" da Aliança Democrática, que a Constituição de 1988 pretendeu implantar, foi completamente abandonado e o que se vê hoje é a recomposição de uma "democracia restrita" que funciona como simulacro de democracia. Combinando descarada manipulação ideológica com repressão direta aos movimentos que ameacem a ordem, como fica evidente na criminalização crescente do movimento popular, na violência policial (e tolerada) contra pobres e jovens, e no domínio do crime nas periferias e favelas. O processo de regressão colonial é o principal responsável pelo avanço da barbárie que acompanha há tantos anos a história do Brasil.

Nesse contexto, a eleição de 2.010 ganha uma importância crucial a despeito da aparente falta de dramaticidade do momento. É que essa eleição cumpre a função estratégica de impedir que haja um debate verdadeiro sobre a situação do país, a fim de não criar nenhum obstáculo ao necessário arrocho da disciplina, nos próximos anos. Por isso, o processo eleitoral de 2.010 torna-se concretamente o eixo central da conjuntura, tanto que, como é fácil perceber, já monopoliza a agenda política do país.

O consenso a respeito disto é essencial para a formulação de uma tática unificada para todos os partidos e movimentos sociais socialistas.

Para atingir seu objetivo, o "establishment" burguês preparou um "scritp" de campanha eleitoral devidamente ajustado à necessidade de impedir o debate real – deseja-se uma campanha centrada em elogios e ataques pessoais, na celebração das melhoras obtidas pelos governantes (apesar da crise), e em promessas de mais melhorias no futuro.

Se este é o objetivo do "establishment", a campanha dos socialistas tem de ter como prioridade o desmascaramento desse discurso "melhorista"; o apoio declarado às demandas concretas dos movimentos sociais; a denuncia das violências cometidas contra os pobres; a ampliação do horizonte de demandas populares. Aos que taxarem esta proposta de pouco revolucionária, pode-se responder: a revolução em cada momento do seu processo consiste na transgressão de imposições concretas dos dominantes. O caráter revolucionário da campanha eleitoral dos socialistas, em 2.010, é a transgressão do "script" de "campanha comportada" traçado pelo "establishment".

 

Com essas preliminares, já se pode expor a proposta de linha tática.

O primeiro passo consiste em propor a unificação de todos os partidos e movimentos sociais socialistas em torno de um objetivo principal e de três objetivos complementares.

O objetivo principal consiste em conscientizar a população a respeito da situação nacional. Conscientizar quer dizer: trazer à consciência; desalienar. Portanto, o objetivo principal dos socialistas nesta campanha é de natureza pedagógica – diz respeito às formas e métodos de transmitir conhecimentos.

Os objetivos complementares da campanha são: unificar os partidos e movimentos sociais de esquerda em torno dos objetivos da campanha (o que supõe a montagem de uma direção unitária para comandá-la); aumentar as bancadas socialistas nos legislativos; expandir territorialmente os núcleos socialistas.

 Por serem complementares, estes objetivos não podem dissociar-se do objetivo principal, e não podem igualmente deixar de merecer atenção e empenho da direção da campanha.

O Programa da Campanha articula as demandas dos movimentos populares autênticos. Estas demandas refletem as necessidades atuais de diversos segmentos da população, bem como o nível de consciência e de organização que os vários setores populares alcançaram ao longo de suas trajetórias.

 A conscientização, via Programa, consiste em mostrar, ao propô-las, a insuficiência das mesmas para resolver definitivamente as necessidades que as fizerem surgir e em apontar a solução real ainda que esta seja imediatamente inatingível. Desse esforço pedagógico surge o "gancho" para apresentar o socialismo, não de maneira doutrinarista, abstrata, mas como termo de uma trajetória que começa, aqui e já, nas lutas concretas de hoje. Não se trata, portanto, de inventar nada, nem de propor metas inatingíveis, abstratas, doutrinárias.

Por exemplo: o MST está reivindicando do governo Lula o cumprimento da promessa de assentar um determinado número de famílias sem terra, o que exige a redução do tamanho da propriedade privada ao limite de 1.000 hectares. O eventual (hoje altamente problemático) atendimento dessa demanda não resolverá cabalmente o problema da massa rural (desemprego, pobreza, alienação ao capital). Por isso, se o Programa e o Discurso se limitarem à demanda imediata, criarão, na massa, uma falsa expectativa: a de que atingidas as metas reivindicadas, o problema estará resolvido. Daí a necessidade de apontar a solução real e esta, como sabemos, não cabe no âmbito do capitalismo – é uma solução não capitalista, a qual, não sendo também uma solução cabal, aponta, contudo, para a solução definitiva no socialismo (transição do modo de produção de mercadorias para o de produção de valores de uso). Só assim o povo se inserirá em um processo dinâmico de transformação da sociedade.

Todo discurso tem um conteúdo e uma retórica. A retórica do discurso socialista tem de ser uma retórica de choque, a fim de despertar consciências anestesiadas. Propondo-se o que o "establishment" não quer nem ouvir falar com um discurso de denúncia lúcida, substantiva e firme, inclusive dos expedientes usados na eleição e explicitando a proposta de um socialismo renovado, esse discurso desnudará a inconsistência, a impostura, a manipulação de estereótipos de participação política estabelecidos por "marketeiros" do sistema.    

Programa e discurso não valerão nada se não forem acompanhados pela ação, ou seja, pelas atitudes e atividades dos candidatos, dirigentes e militantes socialistas. Portanto, é indispensável haver coerência entre o que se propõe e o que se diz com:  alianças eleitorais;  financiamento da campanha; conteúdo da propaganda; trabalho individual e coletivo de proselitismo.

O problema das alianças não é novo no socialismo. Os clássicos o examinaram exaustivamente e Mão Tse Tung chegou a escrever um livro para discuti-lo. Evidentemente para derrotar a burguesia, os socialistas precisam fazer alianças com outras forças políticas, independentemente até das posições que estas assumem em relação à luta do povo. Tudo depende da conjuntura concreta da luta socialista. Na campanha de 2.010, tendo em vista seu objetivo principal, é preciso aliar-se com forças decididas a ter como eixo de seu discurso, a denúncia do capitalismo.

Nesse contexto, a proposta de aliança com a candidatura da senadora Marina Silva, que alguns grupos vem fazendo, carece de qualquer sentido. É mesmo um completo contrasenso. Se não, vejamos:

            - desde a publicação, em 1975, do livro Limites do Crescimento - relatório da pesquisa patrocinada por centros de pesquisa filiados ao Club de Roma - o "establishment" capitalista internacional passou a preocupar-se em deter o ritmo devastador do meio ambiente do planeta, mediante medidas de restrição à produção capitalista. Surgiu então o "ecocapitalismo" - movimento que conseguiu alguns avanços importantes na defesa do ecosistema – todos sempre numa ótica "melhorista". A evolução do problema ambiental nestes 35 anos foi, sem dúvida, melhor do que seria, caso não tivesse surgido o ecocapitalismo, porém, o problema não foi resolvido, como tem insistido o líder atual do movimento, o ex-Vice presidente dos Estados Unidos, Al Gore.

Portanto, a aliança do ecocapitalismo com o ecosocialismo significa colocar no mesmo palanque uma proposta "melhorista" e uma proposta anti-capitalista voltada para o socialismo. É evidente a confusão que se produzirá na cabeça dos eleitores.

Toda "trajetória verde" da senadora Marina Silva é uma trajetória ecocapitalista – ou seja, a proposta de medidas técnicas de proteção do meio ambiente, sem questionamento da lógica da acumulação infinita de capital (inerente à lógica interna do modo de produção capitalista) como a fonte primeira do problema ambiental.[1]

Ao desfiliar-se do PT, Marina teve oportunidade para procurar uma legenda socialista, mas a senadora preferiu filiar-se ao Partido Verde, uma agremiação que faz parte da base do governo Lula e que integra vários governos estaduais de direita. Isso levanta a seguinte questão: como será o discurso dos candidatos proporcionais dos partidos socialistas nesse palanque? 

O argumento central da fórmula Marina/Socialistas é que, com ela na cabeça da chapa, os candidatos proporcionais terão a maior facilidade terão para fazer suas campanhas, dada a popularidade da senadora "verde". Já se expôs, em outro lugar deste texto, a importância de eleger deputados e senadores socialistas, mas uma coisa é a ajuda que a candidatura majoritária tem de prestar aos proporcionais da sua chapa, outra, completamente diferente, é transformar esse objetivo complementar em objetivo principal, pois, em tal caso, evidentemente se estará colocando o carro adiante dos bois.

- Talvez, o argumento mais forte contra essa aliança seja a conformidade dela com o "script" da campanha "comportada" que o "establishment" pretende impor aos partidos na próxima eleição.

 

Finalmente, cabe esclarecer bem o estilo da campanha socialista. O "script" de campanha eleitoral desejado pelo "establishment" burguês repousa no trinômio: ataques pessoais entre os candidatos; celebração das suas grandes realizações no passado; e promessas de melhorias para o futuro.

Obedecer esse "script" implica uma perda política para os partidos de esquerda; desobedecê-lo, contudo, também implica perdas. A essência do debate interno sobre a melhor tática a adotar diante desse dilema não pode ser ofuscada por discussões que impeçam essa clara avaliação, sob pena de desviar os partidos da sua função conscientizadora.[2]

 

A adoção de uma tática socialista para enfrentar a campanha eleitoral de 2.010 esbarra em alguns obstáculos que urge remover.

O primeiro deles é o reformismo: a ilusão de que a burguesia brasileira, mesmo não apoiando, aceitará um governo que promova reformas estruturais no capitalismo brasileiro a fim de dotá-lo de uma "face humana". Se não bastasse o exemplo do governo Goulart, o completo abandono dessas reformas pelo governo Lula mostra claramente que não há espaço algum para reformar estruturalmente o capitalismo brasileiro.

Mas até mesmo o reformismo parece ser forte demais para algumas correntes do movimento socialista. A proposta dessas correntes é "melhorista". Para elas, o avanço político consiste em reduzir o prejuízo: proposta melhor, nesse contexto, não quer dizer aquela que reivindica direitos, que abre novas perspectivas, mas aquela que representa um prejuízo menor do que aquele proposto pela direita. O melhorismo é a seqüela mais grave das derrotas sofridas pelo socialismo nos anos noventa.

Entretanto, pior do que o melhorismo é o obstáculo representado pelo oportunismo, que, na conjuntura concreta da luta socialista, pode assumir a aparência de uma necessidade. Com efeito, é extremamente importante que os partidos socialistas conservem e aumentem, pelo menos um pouco, suas representações no legislativo, a fim de que o povo possa ter alguma voz em um futuro que se apresenta muito ameaçador e, também para manter um espaço mínimo de presença da luta institucional. Por isso, não é de todo injustificada a preocupação em fazer uma campanha com um discurso propondo simples melhoras na situação presente; em estabelecer alianças amplas com as forças políticas; e em colocar na cabeça da chapa uma figura política que facilite o corpo a corpo dos candidatos proporcionais com os eleitores nas praças e ruas.  Contudo, pagar esse preço político para atingir esse objetivo complementar terá evidentemente o efeito de atrasar a conscientização da massa – tarefa primeira e não transigível dos socialistas.

Finalmente, a adoção da tática socialista choca-se com o obstáculo dos estereótipos da campanha eleitoral, construídos por anos de hegemonia da cultura política do "establishment" burguês. Submetendo-se a esses estereótipos, os candidatos socialistas esforçam-se em mimetizar –canhestra e inutilmente - as milionárias campanhas de seus concorrentes da direita.

Campanhas eleitorais nababescas são funcionais para articular o poder político como o poder econômico na ordem social burguesa. O absurdo montante de gastos dessas campanhas constitui importante moeda de troca, usada para compor (e recompor) periodicamente as relações entre o capital privado e as facções da burguesia (no comando e fora do comando na maquina administrativa do Estado). Para isto servem as contribuições das empresas aos candidatos porque permitem utilizar as prestações de contas dos partidos à Justiça Eleitoral como mecanismo seguro de "lavagem" do dinheiro acumulado no Caixa 2 das empresas.

 Esse modelo de campanha obviamente não funciona para os candidatos da esquerda. É indispensável organizar uma campanha que caiba dentro dos recursos que podem ser mobilizados na área popular e que utilize os meios de comunicação aos quais podemos ter acesso. Nessa linha, é importante considerar a possibilidade de um uso mais intensivo e racional das rádios e tvs comunitárias, e, especialmente da Internet, em razão da extrema velocidade dessa comunicação, do seu baixo custo, da dificuldade que tem o "establishment" de controlar as mensagens e, sobretudo, do enorme fascínio que exerce sobre a juventude.

Tudo indica que, assim como o comício de rua do período Populista substituiu o "banquete" enquanto principal meio de divulgação das candidaturas durante a República Velha, e como o radio e a TV reduziram muito a importância dos comícios no tempo do Populismo; a Internet, em razão dos seus superiores recursos de comunicação e interatividade e pelo baixo preço do seu uso, substituirá a carreata, a panfletagem e outros meios atuais de proselitismo eleitoral,.[3]

            Para avançar, é preciso ver além do que se vê.



 
[2] . Ao referir-se ao tipo de campanha como o que foi aqui delineado, alguns camaradas usam a expressão "anti-candidatura", o que tem levado a pensar que se está propondo uma campanha meramente doutrinarista, ideológica, desligada das preocupações concretas dos movimentos populares e da possibilidade de efetivação das medidas incluídas no Programa. Essa compreensão desconhece o significado verdadeiro da expressão anti-candidatura. A anti-candidatura não desconhece de modo algum a importância de obter o maior número de votos e de eleger o maior número possível de proporcionais, até porque o resultado eleitoral é importantíssimo para o desenvolvimento do trabalho político no período pos-eleição. Contudo, esses votos só representarão de fato um capital político, se forem o resultado de um discurso conscientizador  ainda que este possa não produzir os resultados eleitorais de um discurso manipulativo como o da direita. Não é difícil encontrar na trajetória dos partidos socialistas resultados eleitorais significativos que, entretanto, não se traduziram em saldos organizativos ou em aumento real da consciência dos eleitores, pelo desvio do discurso revolucionário. 
[3] O argumento de que a população rural e os moradores das periferias e favelas não dispõem de computadores nem estão ligadas na Internet caiu por terra diante dos resultados de pesquisa recente encomendada por canais de TV, a fim de explicar a razão do declínio de audiência dos programas do horário nobre. A pesquisa revelou que essa queda é igualmente proporcional ao aumento da freqüência de jovens nas lanhouses  e em cafés cibernéticos que proliferaram como cogumelos nas periferias de São Paulo, nestes últimos anos.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Dom Tomás Balduino: Réquiem para a transposição do São Francisco

Réquiem para a transposição do São Francisco

http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/requiem-para-a-transposicao-do-sao-francisco

última modificação 27/10/2009 14:40
Colaboradores: Tomás Balduino

O dobre dos sinos e o jejum têm o peso de uma profecia. Esses símbolos querem dizer que a transposição do São Francisco não se concluirá

27/10/2009

Tomás Balduino

É natural que chefes de Estado tenham o sonho de vincular sua memória a uma grande obra perene. Brasília é o monumento que imortalizou Juscelino Kubitschek. Imagino que Lula, nordestino que passou sede no semiárido, carregou pote d'água na cabeça, possa estar sonhando em se ligar pessoalmente com o nordestino rio São Francisco, símbolo da integração nacional, transformando o grande sertão da seca num abençoado oásis graças a um gigantesco projeto de transposição de suas águas. O projeto nada deveria à Transamazônica nem a Itaipu.

Isso explica, quem sabe, sua apaixonada tenacidade em querer levar adiante essa obra apesar das inúmeras reações contrárias de parte do Judiciário, do Ministério Público, da mídia, dos cientistas, do episcopado católico, das organizações sociais, dos atingidos pelas obras: camponeses, quilombolas, grupos indígenas.

Na sua excursão ao longo do projetado canal, levando aos palanques Ciro Gomes, além da candidata Dilma Rousseff, não faltou, da parte do presidente, o irado recado para os que ele considera obstáculos à transposição. Enquanto isso, chamou a atenção de muitos o gesto do bispo da Barra, dom Luiz Cappio, ordenando o dobre de finados na catedral enquanto Lula perambulava por aquela cidade.

Os sinos são a secular e inconfundível marca da cultura cristã nos templos das grandes metrópoles e nas pequeninas capelas do interior. Acompanham alegrias e esperanças, tristezas e angústias da comunidade nos eventos maiores do lugar ou marcam, com seu toque lúgubre, a morte dos entes queridos e o Dia de Finados.

Conhecendo pessoalmente os sentimentos desse homem, que não hesitou em colocar a sua vida pelo povo ribeirinho, bem como pela revitalização do rio, posso dizer que esse gesto, o do dobre dos sinos, bem como o do jejum, tem o peso de uma profecia. Esses símbolos querem dizer que a transposição do São Francisco não se concluirá. Morrerá. Descansará em paz. Réquiem, então, para ela!

Muita gente está convencida da inviabilidade desse megaprojeto. Eis as razões. A transposição pretende guindar continuamente, em um desnível de 300 metros, 2,1 bilhões de m3 da água mais cara do mundo para o Nordeste, que, por sua vez, já acumula 37 bilhões de m3 a custo zero. Se o problema da seca do Nordeste não se resolve com esses 37 bilhões de m3 armazenados, irá ser resolvido com 2,1 bilhões de m3 da transposição? Uma certeza muitos têm: os 70 mil açudes do Nordeste construídos nesses cem anos demonstram que lá não falta água. O que falta é a distribuição dessa água. Basta implantar um vigoroso sistema de adutoras, como o proposto pela Agência Nacional de Águas, por meio do "Atlas do Nordeste", que foi abafado pelo governo.

Trata-se de levar água por meio de uma malha de tubos e adutoras a toda a população difusa do semiárido para o abastecimento humano, sem a transposição. Enquanto a transposição atenderia 12 milhões de pessoas em quatro Estados, segundo dados oficiais, o projeto alternativo atenderia 44 milhões em dez Estados. Custo: metade do preço da transposição. Nesse emaranhado de conflitos, existe um esperançoso toque de sino.

Enquanto, de um lado, ainda prevalece a indústria da seca (a transposição aí se inscreve), que rende uma fortuna para os políticos e empresários e mantém o povo na situação do flagelado retirante, segundo a expressão lírica de Luiz Gonzaga, de Portinari, de Graciliano Ramos, de João Cabral de Melo Neto etc., do outro lado está surgindo uma nova consciência nas comunidades populares carregada de esperança libertadora.

Trata-se da convivência com o semiárido. Como os povos do gelo, das ilhas e do deserto vivem bem na convivência com seu habitat, assim esse povo começa a descobrir a extraordinária riqueza de vida do Nordeste. A questão não é "acabar com a seca", mas de se adaptar ao ambiente de forma inteligente.

Nessa linha, um pedreiro sergipano inventou a tecnologia revolucionária das chamadas cisternas familiares de captação da água de chuva para o consumo humano. Em mutirão já foram construídas 290 mil cisternas como parte de um projeto de 1,3 milhão de cisternas para captação de água da chuva. Está chegando, pois, a transfiguração do povo e da terra construída de baixo para cima, no respeito e na convivência, libertando-se dos projetos faraônicos devastadores, impostos autoritariamente de cima para baixo.

Esse humilde toque de sino, alegre e festivo, já se pode ouvir com nitidez, pois essa mudança, cheia de vida e esperança, é um fato no grande sertão nordestino.

Dom Tomás Balduino é mestre em teologia e pós-graduado em antropologia e linguística, é bispo emérito de Goiás e ex-presidente da Comissão da Pastoral da Terra.

Roberto Malvezzi (Gogó da CPT Nacional): Cutrale devolve terras griladas.

Fui surpreendido com a notícia abaixo...

Cutrale devolve terras griladas.  

Roberto Malvezzi (Gogó)

Num gesto único na história brasileira, a Cutrale vai devolver as terras públicas que grilou para plantar laranja. Segundo uma pessoa que ocupa cargo decisivo, "mais importante que sete mil pés de laranja derrubados, são as cem mil famílias de brasileiros que estão na beira das estradas". O único condicionante da empresa é que as terras sejam destinadas à reforma agrária, dando preferência às famílias que ocuparam o lugar dias atrás.

Para maior surpresa, admitiu que é inconcebível que, "num país de 8,5 milhões de Km2, haja tantas pessoas sem um lugar para trabalhar e até mesmo para morar".

Com esse gesto, continuou, "contribuiremos para fazer uma justiça histórica nesse país, já que desde a chegada dos portugueses, a terra tornou-se um pesadelo para nossos índios, negros e pequenos camponeses. Queremos, de uma vez por todas, superar essa injustiça histórica, criar a paz no campo e que essa paz se estenda também por nossas cidades".

Para concluir, afirmou que "espero que todas as pessoas e empresas que grilaram terras públicas, como aquelas do Pontal do Paranapanema, ou na Amazônia, ou em qualquer outro canto do Brasil, repliquem o nosso gesto, devolvendo ao país o que é do país. Afinal, todos os brasileiros têm direito a um lugar digno para viver, sem precisar de favores governamentais. Além do mais, uma vez feita a justiça no campo, não vamos mais precisar de ocupações de terras".

O gesto da Cutrale, sem dúvida, é histórico e pegou de surpresa todos aqueles que querem criar uma CPI para investigar o MST. Afinal, ao reconhecer que o primeiro crime cometido foi a grilagem das terras, não há mais porque buscar culpados onde eles não existem.



quarta-feira, 28 de outubro de 2009

PHA: Mulher de Gilmar vai trabalhar com advogado de Dantas. É a Grande Família !

Do sítio Conversa Afiada (www.paulohenriqueamorim.com.br)

A colonista(*) Mônica Bergamo informa na Folha(**) de hoje que a mulher de Gilmar Dantas (***) vai trabalhar como "gestora na área jurídica (?) do escritório do advogado Sergio Bermudes, do Rio."

A colonista(*) Mônica Bergamo é excepcionalmente diligente e bem informada, até certo ponto.

Por exemplo.

Tão bem informada, ela se esquece de informar que Sergio Bermudes é um dos notáveis advogados dos 1001 advogados da milícia judicial de Daniel Dantas.

Ou seja, a mulher do juiz que, deu em 48hs, dois HCs a Daniel Dantas vai trabalhar com o advogado de Dantas.

Viva o Brasil !

Paulo Henrique Amorim

Em tempo: uma das últimas manifestações públicas da devoção de Bermudes à Gilmar Dantas(***) foi escrever um furibundo artigo na Folha(**) contra o corajoso ministro Joaquim Barbosa, porque se recusa a receber advogados como Sergio Bermudes.

(*) Não tem nada a ver com cólon. São os colonistas do PiG (****) que combatem na milícia para derrubar o presidente Lula. E assim se comportarão sempre que um presidente no Brasil, no mundo e na Galáxia tiver origem no trabalho e, não, no capital. O Mino Carta costuma dizer que o Brasil é o único lugar do mundo em que jornalista chama patrão de colega. É esse pessoal aí.

(**) Folha é um jornal que não se deve deixar a avó ler, porque publica palavrões. Além disso, Folha é aquele jornal que entrevista Daniel Dantas DEPOIS de condenado e pergunta o que ele acha da investigação, da "ditabranda", do câncer do Fidel, da ficha falsa da Dilma, de Aécio vice de Serra, e que nos anos militares emprestava os carros de reportagem aos torturadores.

(***) Acompanhe aqui, amigo navegante, como um ilustre jornalista do Globo, do Globo !, se refere a Ele

(****) Em nenhuma democracia séria do mundo, jornais conservadores, de baixa qualidade técnica e até sensacionalistas, e uma única rede de televisão têm a importância que têm no Brasil. Eles se transformaram num partido político – o PiG, Partido da Imprensa Golpista.

o Comunista)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Celso Lungaretti: De Lula-lá a Pilatos

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deu longa entrevista a Kennedy Alencar, que é matéria-de-capa da Folha de S. Paulo e está integralmente reproduzida na Folha On Line.

O que dela se filtra é, principalmente, a metamorfose do Lula num mais do que competente político convencional.

Caíram do cavalo os que apostavam na sua incapacidade de pensar, falar e agir como presidente da República, por ter formação escolar apenas básica.

Pelo contrário, suas palavras e raciocínios são os mesmíssimos dos presidentes que essa gente erige como modelos.

Decepção real é a dos idealistas que apostaram nele e fizeram campanhas voluntárias, com doação extrema dos seus esforços, para colocá-lo no poder.

A faixa presidencial o fez esquecer ideologia e se tornar mais um adepto do realismo político, com tudo que isso tem de sinistro num país tão desigual e tão injusto como o Brasil.

Lula já emitiu, com outras palavras, o conceito de que só um desmiolado continua esquerdista ao se tornar sexagenário.

Agora ele acrescentou outras pérolas na mesma linha. P. ex.: "Não utilizo mais a palavra burguesia".

Coerentemente, qualifica Roger Agnelli (presidente da Vale) e Eike Batista (o homem mais rico do Brasil) com a mesma expressão: "grande executivo".

Eu preferia os tempos em que ele designava tais figuras como burgueses fdp. Mas...

Também é chocante ouvir Lula confessar que suas afirmações aparentemente tão convictas de outrora não passavam de papo furado: "Quando se é oposição, você acha, pensa, acredita. Quando é governo, faz ou não faz. Toma decisão".

Ou seja, se você não tem o poder, o que diz não passa de retórica inconsequente. Quando você está no poder, aí sim é que mostra quem realmente é, por suas atitudes.

Deu-me razão. Há anos venho afirmando que o Governo Lula se define mesmo é por sua política econômica - no caso, neoliberal, idêntica à de FHC.

Fiquem os leitores sabendo que ele concorda com este critério. Discurso é conversa pra boi dormir, o que vale é a ação.

E a atuação concreta do Governo Lula prioriza o grande capital, os banqueiros e o agronegócio. Em suma, os burgueses, que continuam existindo e sendo socialmente perversos e nocivos, pouco importando a forma como os denominemos.

Lula também deixa claro o motivo de hoje fazer coro aos reacionários em suas críticas aos MST:
"Em 2002, fizemos uma pesquisa em que 85% diziam que a reforma agrária tinha de ser pacífica. Levei mais de 15 dias para que minha boca pudesse proferir reforma agrária tranquila e pacífica. Essas mudanças têm de ter. Algumas coisas que a gente fala, pensando que está agradando, não batem com o que povo pensa".
Só esquece de dizer que o que o povo pensa tem 99% a ver com o que a grande imprensa martela na sua cabeça. E que a cobertura das ações do MST é extremamente tendenciosa e distorcida.

Mas, para um político convencional, o que importa mesmo é aquilo que o povo acredita ter concluído por conta própria, embora, na verdade, lhe tenha sido impingido pela indústria cultural.

Então, se houver considerável maioria de posições contra o MST, nas tais pesquisas de opinião nunca totalmente confiáveis, é nesta direção que o político Lula irá. Sorry, MST!

"JESUS TERIA DE CHAMAR JUDAS
PARA FAZER COALIZÃO"


O Lula realista só não aprendeu a falar muito sem dizer nada, como fazem os outros políticos convencionais. Às vezes, seus excessos retóricos permitem que descortinemos a verdade oculta atrás dos bimbos.

Seu maior ato falho, desta vez, foi proclamar em alto e bom som o que realmente são os partidos da base aliada:
"Quem vier para cá não montará governo fora da realidade política. Se Jesus Cristo viesse para cá, e Judas tivesse a votação num partido qualquer, Jesus teria de chamar Judas para fazer coalizão".
Depois disto, nada mais surpreende.

Nem a defesa que faz de sua própria atuação no Sarneygate, não por considerar inocente o "grande republicano" (é assim que Lula se refere a ele noutro trecho), mas porque, se fosse feita justiça, a presidência do Senado seria assumida por um tucano. Ah, a maldita governabilidade, quantas infamias se cometem em seu nome!

Nem sua justificativa tosca ("Não tenho relações de amizade, mas relações institucionais") para a atual promiscuidade com figuras que o Lula do passado abominaria, como Fernando Collor, Renan Calheiros e Jader Barbalho.

Nem sua entendiado descaso, só faltando bocejar ("Palocci pode reconstruir a vida dele"), diante da incompatibilidade extrema entre o que Antonio Palocci fez (mobilizar todo o poder do Estado contra um mero caseiro) e a proposta original do PT (representar os humildes e os fracos na sua luta contra os poderosos).

O Lula realista, que admite fazer alianças com quaisquer judas, escolheu ser Pôncio Pilatos: lava as mãos dos resíduos imundos da governabilidade e vai em frente.

Que nunca lhe falte sabonete, e que não venha a ter também nas mãos o sangue dos inocentes - é o que lhe desejo.

*Jornalista e escritor, Celso Lungaretti mantém os blogues: naufrago-da-utopia.blogspot.com/   celsolungaretti-orebate.blogspot.com/

sábado, 17 de outubro de 2009

Francisco Bosco (Revista Cult): Big Brother Belchior

"Antes de sair de casa, peça a bênção a Patricia Poeta"
Francisco Bosco


No famoso plano-sequência de Profissão: Repórter, o assassinato de David Locke é narrado de modo indireto, por meio de uma janela com grade. Mas a força da cena não está exatamente em seu caráter indireto - o qual sempre se exalta - e sim na mediação da janela gradeada. Como se sabe, o repórter David Locke aproveita-se da morte de um desconhecido em um vilarejo remoto na África para falsificar sua própria morte e assumir a identidade do outro.

O que está em jogo para ele é uma tentativa de sair radicalmente de si. Como repórter, ele viaja o mundo fazendo entrevistas, matérias, documentários, mas sente que os deslocamentos geográficos e culturais não o levam a afastar-se de si próprio, pois ele, em suas palavras, acaba codificando toda a diferença nos seus (dele) próprios termos, fazendo-a desembocar sempre de volta no registro da identidade. Ao valer-se da morte de um desconhecido para tentar desconhecer-se, Locke vê-se herdeiro imediato da vida desse outro, David Robertson, um traficante internacional de armas.

Passa, então, a ser perseguido por agentes de um governo africano, pois Robertson fornecia armas para uma guerrilha que se lhe opunha. Ao mesmo tempo, a ex-mulher de Locke descobre que a morte de Robertson foi falsificada e começa ela também a persegui-lo. Locke não demora muito para concluir que sua tentativa fracassara. Não lhe bastara colar sua foto no passaporte de outro para transformar-se em outra pessoa. Pior, agora ele estava multiplamente emparedado: dentro de si mesmo, dentro da realidade de outro (mas não de sua subjetividade) e dentro de seu passado, que não pudera aniquilar. O emparedamento descortina-lhe o nome: David Locke, Locke D., ou seja, locked, trancado.

É por isso que o famoso plano-sequência é narrado através da janela gradeada, que assoma, então, como o correlato material da impossibilidade existencial a que se lançou Locke. Dentro do quarto, ele dorme, enquanto, pelas grades - portanto, da perspectiva dele -, vemos a realidade que lhe assaltaria, mas que ele não podia alcançar. Vemos, então, os agentes chegarem, andarem na direção do hotel e saírem do enquadramento.

Em seguida, ouvimos um tiro. A partir daí há uma extraordinária inversão de perspectiva. A jovem que Locke conhecera em Barcelona e passara a acompanhá-lo em sua fuga entra no quarto no mesmo momento que a ex-mulher dele, acompanhada da polícia. O policial pergunta, primeiro à ex-mulher: "Você o reconhece?", ao que ela responde: "Eu nunca o conheci". Em seguida, a mesma pergunta é dirigida à jovem, e sua resposta é: "Sim". Essa cena é narrada de fora para dentro da janela gradeada.

Da perspectiva da ex-mulher, havia também um emparedamento em Locke; ela nunca pôde conhecê-lo, embora tivesse vivido com ele muitos anos. Já a jovem, cujo nome não vem à tona, e a quem Locke se apresentara sob um nome falso, afirma, sem hesitar, tê-lo conhecido (confirmando uma frase de Barthes segundo a qual "conhecer alguém é conhecer-lhe o desejo").

Onde está Belchior?


O filme de Antonioni é de meados dos anos 1970. Sua questão é existencial: é possível reinventar-se completamente, ser radicalmente outro? A resposta do filme é não - mas não é isso que desejo investigar aqui. Quero chamar atenção para o fato de que, mesmo sendo Locke um repórter, a mídia não é uma questão fundamental para o filme. As forças que lhe saem à captura são a polícia, os agentes do governo africano e sua ex-mulher, ajudada pela embaixada. Locke consegue sair da África e ir para Londres, daí para Barcelona, daí para cidades pequenas na Espanha, até ser encontrado - e tudo isso se passa em registro de experiência privada. Agora cortemos para agosto de 2009, onde vamos acompanhar outra perseguição, bem diferente.

A primeira notícia de que Belchior havia desaparecido foi publicada num site. Nele, depoimentos de amigos e parentes afirmavam desconhecer o paradeiro do cantor. Daí em diante pipocaram novas matérias. Os maiores jornais do país noticiaram o sumiço, o Fantástico fez uma matéria, até a imprensa estrangeira repercutiu o assunto. Novas informações começaram a aparecer: Belchior teria dívidas com hotéis e estacionamentos. Especulações também surgiram: com a carreira em baixa, o cancionista estaria tentando criar um factoide que o levasse novamente aos holofotes.

E não faltaram, é claro, as piadas na internet: numa delas, Belchior figura entre os personagens do seriado Lost; noutra, murmura-se que seu desaparecimento faz parte de um mistério mais amplo, a envolver o sumiço de outros cantores, como Biafra, Silvinho (aquele do ursinho Blau Blau) etc. O mistério levou apenas três semanas até ser esclarecido, pelo Fantástico, que na edição do dia 30 de agosto revelou o paradeiro de Belchior e arrancou dele uma entrevista. Ao assistir à reportagem do Fantástico, fiquei ao mesmo tempo indignado e apavorado.

Vigiar e perseguir

Antes de entrar a reportagem, um solene Tadeu Schmidt anuncia o fim do mistério: Belchior foi localizado pelo Fantástico. Em seguida, Patrícia Poeta, em tom de reproche maternal, diz que o cancionista, "que se afastou da família, dos amigos e dos fãs, deu as suas razões à repórter Sônia Bridi". Pronto, começou o pesadelo.

O que vem a seguir é uma demonstração assustadora do funcionamento de uma sociedade de controle, onde um desvio existencial, mesmo que não diga respeito a mais ninguém, é tornado objeto de visibilidade, escrutínio, sarcasmo e julgamento públicos. É importante observar que a perseguição a Belchior não partiu da Justiça, a fim de que ele saldasse suas possíveis dívidas, mas sim da mídia; isto é, não foi movida por um legítimo interesse público (que não se confunde com uma espetacularização pública), mas por uma mistura de jornalismo de fofoca e vigilância coletiva, por meio da qual se pode ler um sintoma, a que voltarei.

O Fantástico recebeu pistas de pessoas que haviam estado recentemente com Belchior. Por meio delas, reuniram-se evidências de que ele estivera nas últimas semanas no Uruguai. Sim, evidências, porque foram enviadas fotos de Belchior em situações privadas (com o acoplamento de máquinas fotográficas em celulares, todo cidadão que os possui torna-se um delator em potencial). Em seguida, os repórteres receberam um e-mail anônimo que revelava o paradeiro de Belchior: ele estaria na pequena cidade de San Gregorio de Polanco, nos pampas uruguaios. O Fantástico não demorou a achar a pousada em que Belchior estava hospedado. Ao ligar para ela, alguém disse que o (a esta altura) fugitivo estivera lá, porém já fora embora. "Mas era mentira", conta a repórter Sônia Bridi, que, desconfiada, vai até lá e chega à porta de Belchior com a câmera ligada.

Já então era óbvio que Belchior não queria ser encontrado. Mas o desejo - e esse desejo não deve ser econhecido como um direito? - de privacidade não conta para o Fantástico. A repórter bate na porta, Belchior não quer conversa, mas ela insiste, ronda a casa, sussurra com a voz mais cínica do mundo: "A gente veio de tão longe pra te encontrar, tem tanta gente te procurando lá no Brasil...".

Belchior deve ter resistido por horas, pois as primeiras imagens são ainda de dia, e quando ele finalmente cede já é noite. Sai de casa e quase podemos ouvir o famoso bordão futebolístico: "Taí o que você queria". O Fantástico triunfa, o que há de mais desrespeitoso nas pessoas também. E Belchior? Com uma aparência existencialmente saudável, ironiza com sutileza e bom humor o absurdo da invasão; diz ter achado estranha a primeira matéria do Fantástico (que ele viu pela internet), que aquilo nada tinha a ver com ele, e que ele não é uma celebridade.

Em seguida, recusa-se, com coragem firme, a responder a questões a respeito de sua vida privada. Num momento antológico, constrange a repórter - e, por extensão, espero, todos que compartilhavam ali a posição dela - ao afirmar que não tem interesse pela vida privada de niguém. Esclarece que sua presença ali se deve a um trabalho "muito especial" que está sendo desenvolvido por ele, a tradução de todo o seu cancioneiro para a língua espanhola, aproveitando para lembrar sua ligação com a América Latina, citando seu verso "Eu sou apenas um rapaz latino-americano".

Da perspectiva do perseguidor, o ponto central da cena reside na seguinte pergunta da repórter: "Você não deixou de fazer contato com sua família, com seus amigos, nesse período?". Essa pergunta retoma o tom de mamãe controladora de Patrícia Poeta. Nela está implícito nada menos do que isso: ninguém tem o direito de abandonar (mesmo provisoriamente) sua família e seus amigos, e se tiver essa audácia será julgado em público por ela. Ninguém tem o direito de em algum momento querer reinventar-se, ou simplesmente querer afastar-se, sem pedir a bênção aos demais.

A perseguição a Belchior, então, parece assumir um caráter sintomático: é precisamente porque todo mundo tem, já teve, terá ou pode ter esse desejo de reinventar-se, e não consegue realizá-lo ou nem ao menos assumi-lo, que aquele que o levou adiante deve ser perseguido, descoberto e recolocado em seu lugar. Deve ser lembrado de que tem satisfações a dar e de que, no limite, sem o consentimento dos outros, não pode se afastar deles. Pois os outros não querem ser lembrados de suas próprias covardias ou mediocridades existenciais.

É tênue a fronteira entre a curiosidade, o jornalismo e o desrespeito brutal. É revoltante (e apavorante) que essa questão não seja sequer colocada pelos que estão prestes a atravessá-la. Nos anos 1970, David Locke estava trancado em sua subjetividade; o caso Belchior vem nos lembrar que, hoje, estamos trancados na realidade, ao ar livre, gradeados por milhares de olhos que nunca se fecham.

franciscobosco@terra.com.br

Santayana: A CPI do MST E AS TERRAS ROUBADAS

Por Mauro Santayana

A terra é o mais grave problema de nossa história social, desde que os reis de Portugal retalharam a geografia do país, com a concessão de sesmarias aos fidalgos. Os pobres não tiveram acesso pleno e legal à
terra, a não ser nos 28 anos entre a independência – quando foi abolido o regime das sesmarias – e 1850, quando os grandes proprietários impuseram a Lei de Terras, pela qual as glebas devolutas só podiam ser adquiridas do Estado a dinheiro.

A legislação atual vem sendo sabotada desde que foi aprovado o Estatuto da Terra. É fácil condenar a violência cometida, em episódios isolados, e alguns muito suspeitos, pelos militantes do MST. Difícil tem sido a punição dos que matam seus pequenos líderes e os que os defendem. Nos últimos anos, segundo o MST, mais de 1.600 trabalhadores rurais foram assassinados e apenas 80 mandantes e executores chegaram
aos tribunais. Em lugar de uma CPI para investigar as atividades daquele movimento, seria melhor para a sociedade nacional que se discutisse, a fundo, a questão agrária no Brasil.

O Censo de 2006, citado pelo MST, revela que 15 mil proprietários detêm 98 milhões de hectares, e 1% deles controla 46% das terras cultiváveis. Muitas dessas glebas foram griladas. Temos um caso atualíssimo, o do Pontal do Paranapanema, onde terras da União estão ocupadas ilegalmente por uma das maiores empresas cultivadoras de cítricos do Brasil. O Incra está em luta, na Justiça, a fim de recuperar a sua posse. O que ocorre ali, ocorre em todo o país, com a cumplicidade, remunerada pelo suborno, de tabeliães e de políticos.

Cinco séculos antes de Cristo, os legisladores já se preocupavam com a questão social e sua relação com a posse da terra. É conhecida a reforma empreendida por Sólon, o grande legislador, na Grécia, que, com firmeza, mandou quebrar os horoi, ou marcas delimitadoras das glebas dos oligarcas. Mais ou menos na mesma época, em 486, a.C., Spurio Cássio, um nobre romano, fez aprovar sua lei agrária, que mandava medir as glebas de domínio público e separar parte para o Tesouro do Estado e parte para ser distribuída aos pobres.

Imediatamente os nobres se sublevaram como um só homem, e até mesmo os plebeus enriquecidos (ou seja a alienada classe média daquele tempo) a eles se somaram. Spurio Cássio, como conta Theodor Mommsen em sua História de Roma, foi levado à morte. "A sua lei foi sepultada com ele, mas o seu espectro, a partir de então, arrostava incessantemente a memória dos ricos, e, sem descanso, surgia contra eles, até que, pela continuada luta, a República se desfez" – conclui Mommsen. E com razão: a última e mais completa lei agrária romana foi a dos irmãos Graco, Tibério e Caio, ambos mortos pelos aristocratas descontentes com sua ação em favor dos pobres. Assim, a República se foi dissolvendo nas guerras sociais, até que Augusto a liquidou, ao se fazer imperador, e seus sucessores conduziram a decadência da grande experiência histórica.

Não há democracia sem que haja reforma agrária. A posse familiar da terra – e da casa, na situação urbana – é o primeiro ato de cidadania, ou seja, de soberania. Essa posse vincula o homem e sua família à terra, à natureza e à vida. Sem lar, sem uma parcela de terra na qual seja relativamente senhor, o homem é esgarrado, nômade sem lugar nas sociedades sedentárias.

É impossível ao MST estabelecer critérios rígidos de ação, tendo em vista a diversidade regional e a situação de luta, caso a caso. Outro ponto fraco é a natural permeabilidade aos agentes provocadores e infiltrados da repressão particular, ou da polícia submetida ao poder econômico local. No caso do Pontal do Paranapanema são muitas as suspeitas de que tenham agido provocadores. É improvável que os invasores tenham chamado a imprensa a fim de documentar a derrubada das laranjeiras – sabendo-se que isso colocaria a opinião pública contra o movimento. Repete-se, de certa forma, o que houve, há meses, no Pará, em uma propriedade do banqueiro Daniel Dantas.

É necessária a criação de força-tarefa, composta de membros do Ministério Público e agentes da Polícia Federal que promova, em todo o país, devassa nos cartórios e anule escrituras fraudulentas. No Maranhão, quiseram vender à Vale do Rio Doce (então estatal), extensas glebas. A escritura estava registrada em 1890, em livro redigido e assinado com caneta esferográfica – inventada depois de 1940.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Ibope não dá Ibope... e a reação dos ruralistas...

A mais recente ofensiva dos inimigos da Reforma Agrária surgeembalada por uma pesquisa encomendada pelos latifundiários paramostrar que a Reforma Agrária não deu certo a partir de uma amostra de
nove assentamentos num universo de quase nove mil. O que causa estranheza no caso em tela é a utilização de uma pesquisa com amostra extremamente restrita, quando, uma vez divulgado o censo agropecuário
poderia se fazer uma análise a partir de todo o universo.

Na verdade não causa estranheza o resultado da pesquisa, ou ela emsi, pois trata-se de uma clara ferramente de uma disputa ideológica onde o setor da agricultura patronal se viu acuado com os resultados
do censo que demonstravam a inequívoca necessidade e uma reforma agrária massiva. Não apenas pelo aumento da concentração fundiária (e conseqüentemente de riqueza) no país, mas também pela clara
demonstração da maior eficiência econômica, produtiva e social da agricultura familiar. Ou seja, a pequena propriedade produz mais, gerando mais renda e respondendo por uma parcela majoritária da produção dos alimentos que compõem a dieta básica do povo brasileiro.

Mas o que realmente espanta é a mídia corporativa assumir comoverdadeira a pesquisa feita por um instituto especializado em pesquisas de opinião (como expressa o próprio nome da entidade, Instituto Brasileiro de Opinião Pública, IBOPE) e cujo presidente tem preferências políticas claras por um grupo político que já governou país e defende uma política notoriamente anti-reforma agrária. Todavia como os principais grupos de mídia são grandes proprietários rurais e os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária recentemente conquistaram a promessa (ainda não cumprida diga-se de passagem) do Presidente da República de rever os índices de produtividade para fins de desapropriação, a ofensiva não surpreende.

Há ainda que se ressaltar um outro aspecto curioso da cobertura parcial da nossa mídia. Se a crítica fosse pela lentidão na condução do processo de reforma agrária no Brasil ou pela ausência de assistência técnica contínua na imensa maioria dos assentamentos do país, poderia ser levada a sério. Entretanto, o ataque procura 'alvos fáceis', pois o objeto da pesquisa citada são assentamentos emancipados (consolidados no entendimento do INCRA), cujos processos de emancipação/consolidação foram concluídos a toque de caixa sem que fossem obedecidas a s condições necessárias para a conclusão de tal processo. Há casos em áreas que sequer tinham sido titulados e que os projetos de assentamentos foram consolidados.

As famílias simplesmente eram jogadas na terra sem assistência técnica, sem infra-estrutura, com crédito insuficiente e chamavam este processo de reforma agrária, ao contrário do preconiza toda a literatura sobre o tema. E como sempre é importante dar-se os nomes aos bois, tudo ocorreu na gestão do Sr. Raul Jungman à frente do Ministério do Desenvolvimento Agrário, de forma que temos duas opções para as causas do problema, uma deliberada tentativa de desacreditar a política pública da reforma agrária ou incompetência, cada um julga conforme seu critério.