Tática Socialista para 2.010
Plínio Arruda Sampaio
O debate sobre a tática eleitoral do PSOL na eleição de 2.010 está aberto, e várias posições já estão se delineando.
A inexistência de textos oficiais das lideranças e correntes que apóiam tais posições faz com que versões desencontradas a respeito delas circulem no partido. O risco disso é desviar o debate de seus eixos concretos, o que redunda evidentemente em prejuízo para o partido. Daí porque, convém abrir um debate sobre as mesmas, a fim de contribuir para uma discussão menos vaga sobre o tema de modo a ensejar esclarecimentos, caso alguma versão descrita neste texto não seja fiel.
O presente texto consiste, portanto, em uma análise assim como em uma proposta sobre a Tática para 2.010 – tática esta que inclui necessariamente a questão do Programa da campanha eleitoral.
A tarefa dos partidos socialistas consiste em conscientizar as massas populares. Ela varia segundo as conjunturas do processo de luta de classes. Nos tempos de pré-insurreição ou de insurreição aberta há que prepará-las para confrontar diretamente o poder da burguesia. Nos tempos de refluxo, a tarefa principal passa a ser: fazer propaganda, agitar e organizar o povo de modo a avançar o socialismo. Nesse contexto, a participação em campanhas eleitorais assume importância.
Uma campanha eleitoral consta de: Programa, Discurso, Proselitismo. A função da tática é articular essas três ações, a fim de obter o efeito pedagógico conscientizador.
A formulação do plano tático tem inicio com a identificação do eixo central da conjuntura, que, sem dúvida, é hoje, a crise do capitalismo.
Esta crise é determinante para as ações tanto da burguesia quanto do campo popular. Trata-se de uma crise sistêmica do modo de produção capitalista, agravada, a partir de 2008, pela eclosão de uma crise econômica e financeira mundial.
No Brasil, a intelectualidade burguesa tem procurado minimizar os efeitos da crise econômica no Brasil, mediante malabarismos retóricos destinados a convencer a população de que, a despeito da crise, a economia brasileira está crescendo e continuará a crescer. O objetivo desse discurso é acalmar governo, investidores, consumidores (governo, gaste; investidores, invistam; consumidores, consumam! Não poupem!) para convencê-los de que a situação está sob controle e não há problema de governabilidade e de insolvência geral à vista.
Ora, este não é o ponto do debate, porque não é nisto que consiste a crise, e sim na perda do que resta de autonomia decisória interna; no aumento crescente da dependência externa; no distanciamento tecnológico; na destruição acelerada dos recursos naturais, e, sobretudo nos seus devastadores efeitos em termos de destruição do tecido moral do Estado; de aprofundamento e perpetuação da pobreza; de descontrole da violência do Estado; de divisão e criminalização dos movimentos sociais; e no aumento da violência criminosa contra a população trabalhadora.
Tudo isto faz parte de um processo, hoje em adiantado estágio, de regressão neocolonial - processo este que não se limita ao econômico e ao social, mas destrói com igual virulência o sentimento de identidade nacional, o sentido da coesão social, a moral individual e pública.
A crise e o processo de regressão colonial impõem uma disciplina social ainda mais rígida do que atualmente sobre os pobres, os trabalhadores, os movimentos populares. O projeto de superação da "democracia restrita" da Aliança Democrática, que a Constituição de 1988 pretendeu implantar, foi completamente abandonado e o que se vê hoje é a recomposição de uma "democracia restrita" que funciona como simulacro de democracia. Combinando descarada manipulação ideológica com repressão direta aos movimentos que ameacem a ordem, como fica evidente na criminalização crescente do movimento popular, na violência policial (e tolerada) contra pobres e jovens, e no domínio do crime nas periferias e favelas. O processo de regressão colonial é o principal responsável pelo avanço da barbárie que acompanha há tantos anos a história do Brasil.
Nesse contexto, a eleição de 2.010 ganha uma importância crucial a despeito da aparente falta de dramaticidade do momento. É que essa eleição cumpre a função estratégica de impedir que haja um debate verdadeiro sobre a situação do país, a fim de não criar nenhum obstáculo ao necessário arrocho da disciplina, nos próximos anos. Por isso, o processo eleitoral de 2.010 torna-se concretamente o eixo central da conjuntura, tanto que, como é fácil perceber, já monopoliza a agenda política do país.
O consenso a respeito disto é essencial para a formulação de uma tática unificada para todos os partidos e movimentos sociais socialistas.
Para atingir seu objetivo, o "establishment" burguês preparou um "scritp" de campanha eleitoral devidamente ajustado à necessidade de impedir o debate real – deseja-se uma campanha centrada em elogios e ataques pessoais, na celebração das melhoras obtidas pelos governantes (apesar da crise), e em promessas de mais melhorias no futuro.
Se este é o objetivo do "establishment", a campanha dos socialistas tem de ter como prioridade o desmascaramento desse discurso "melhorista"; o apoio declarado às demandas concretas dos movimentos sociais; a denuncia das violências cometidas contra os pobres; a ampliação do horizonte de demandas populares. Aos que taxarem esta proposta de pouco revolucionária, pode-se responder: a revolução em cada momento do seu processo consiste na transgressão de imposições concretas dos dominantes. O caráter revolucionário da campanha eleitoral dos socialistas, em 2.010, é a transgressão do "script" de "campanha comportada" traçado pelo "establishment".
Com essas preliminares, já se pode expor a proposta de linha tática.
O primeiro passo consiste em propor a unificação de todos os partidos e movimentos sociais socialistas em torno de um objetivo principal e de três objetivos complementares.
O objetivo principal consiste em conscientizar a população a respeito da situação nacional. Conscientizar quer dizer: trazer à consciência; desalienar. Portanto, o objetivo principal dos socialistas nesta campanha é de natureza pedagógica – diz respeito às formas e métodos de transmitir conhecimentos.
Os objetivos complementares da campanha são: unificar os partidos e movimentos sociais de esquerda em torno dos objetivos da campanha (o que supõe a montagem de uma direção unitária para comandá-la); aumentar as bancadas socialistas nos legislativos; expandir territorialmente os núcleos socialistas.
Por serem complementares, estes objetivos não podem dissociar-se do objetivo principal, e não podem igualmente deixar de merecer atenção e empenho da direção da campanha.
O Programa da Campanha articula as demandas dos movimentos populares autênticos. Estas demandas refletem as necessidades atuais de diversos segmentos da população, bem como o nível de consciência e de organização que os vários setores populares alcançaram ao longo de suas trajetórias.
A conscientização, via Programa, consiste em mostrar, ao propô-las, a insuficiência das mesmas para resolver definitivamente as necessidades que as fizerem surgir e em apontar a solução real ainda que esta seja imediatamente inatingível. Desse esforço pedagógico surge o "gancho" para apresentar o socialismo, não de maneira doutrinarista, abstrata, mas como termo de uma trajetória que começa, aqui e já, nas lutas concretas de hoje. Não se trata, portanto, de inventar nada, nem de propor metas inatingíveis, abstratas, doutrinárias.
Por exemplo: o MST está reivindicando do governo Lula o cumprimento da promessa de assentar um determinado número de famílias sem terra, o que exige a redução do tamanho da propriedade privada ao limite de 1.000 hectares. O eventual (hoje altamente problemático) atendimento dessa demanda não resolverá cabalmente o problema da massa rural (desemprego, pobreza, alienação ao capital). Por isso, se o Programa e o Discurso se limitarem à demanda imediata, criarão, na massa, uma falsa expectativa: a de que atingidas as metas reivindicadas, o problema estará resolvido. Daí a necessidade de apontar a solução real e esta, como sabemos, não cabe no âmbito do capitalismo – é uma solução não capitalista, a qual, não sendo também uma solução cabal, aponta, contudo, para a solução definitiva no socialismo (transição do modo de produção de mercadorias para o de produção de valores de uso). Só assim o povo se inserirá em um processo dinâmico de transformação da sociedade.
Todo discurso tem um conteúdo e uma retórica. A retórica do discurso socialista tem de ser uma retórica de choque, a fim de despertar consciências anestesiadas. Propondo-se o que o "establishment" não quer nem ouvir falar com um discurso de denúncia lúcida, substantiva e firme, inclusive dos expedientes usados na eleição e explicitando a proposta de um socialismo renovado, esse discurso desnudará a inconsistência, a impostura, a manipulação de estereótipos de participação política estabelecidos por "marketeiros" do sistema.
Programa e discurso não valerão nada se não forem acompanhados pela ação, ou seja, pelas atitudes e atividades dos candidatos, dirigentes e militantes socialistas. Portanto, é indispensável haver coerência entre o que se propõe e o que se diz com: alianças eleitorais; financiamento da campanha; conteúdo da propaganda; trabalho individual e coletivo de proselitismo.
O problema das alianças não é novo no socialismo. Os clássicos o examinaram exaustivamente e Mão Tse Tung chegou a escrever um livro para discuti-lo. Evidentemente para derrotar a burguesia, os socialistas precisam fazer alianças com outras forças políticas, independentemente até das posições que estas assumem em relação à luta do povo. Tudo depende da conjuntura concreta da luta socialista. Na campanha de 2.010, tendo em vista seu objetivo principal, é preciso aliar-se com forças decididas a ter como eixo de seu discurso, a denúncia do capitalismo.
Nesse contexto, a proposta de aliança com a candidatura da senadora Marina Silva, que alguns grupos vem fazendo, carece de qualquer sentido. É mesmo um completo contrasenso. Se não, vejamos:
- desde a publicação, em 1975, do livro Limites do Crescimento - relatório da pesquisa patrocinada por centros de pesquisa filiados ao Club de Roma - o "establishment" capitalista internacional passou a preocupar-se em deter o ritmo devastador do meio ambiente do planeta, mediante medidas de restrição à produção capitalista. Surgiu então o "ecocapitalismo" - movimento que conseguiu alguns avanços importantes na defesa do ecosistema – todos sempre numa ótica "melhorista". A evolução do problema ambiental nestes 35 anos foi, sem dúvida, melhor do que seria, caso não tivesse surgido o ecocapitalismo, porém, o problema não foi resolvido, como tem insistido o líder atual do movimento, o ex-Vice presidente dos Estados Unidos, Al Gore.
Portanto, a aliança do ecocapitalismo com o ecosocialismo significa colocar no mesmo palanque uma proposta "melhorista" e uma proposta anti-capitalista voltada para o socialismo. É evidente a confusão que se produzirá na cabeça dos eleitores.
Toda "trajetória verde" da senadora Marina Silva é uma trajetória ecocapitalista – ou seja, a proposta de medidas técnicas de proteção do meio ambiente, sem questionamento da lógica da acumulação infinita de capital (inerente à lógica interna do modo de produção capitalista) como a fonte primeira do problema ambiental.[1]
Ao desfiliar-se do PT, Marina teve oportunidade para procurar uma legenda socialista, mas a senadora preferiu filiar-se ao Partido Verde, uma agremiação que faz parte da base do governo Lula e que integra vários governos estaduais de direita. Isso levanta a seguinte questão: como será o discurso dos candidatos proporcionais dos partidos socialistas nesse palanque?
O argumento central da fórmula Marina/Socialistas é que, com ela na cabeça da chapa, os candidatos proporcionais terão a maior facilidade terão para fazer suas campanhas, dada a popularidade da senadora "verde". Já se expôs, em outro lugar deste texto, a importância de eleger deputados e senadores socialistas, mas uma coisa é a ajuda que a candidatura majoritária tem de prestar aos proporcionais da sua chapa, outra, completamente diferente, é transformar esse objetivo complementar em objetivo principal, pois, em tal caso, evidentemente se estará colocando o carro adiante dos bois.
- Talvez, o argumento mais forte contra essa aliança seja a conformidade dela com o "script" da campanha "comportada" que o "establishment" pretende impor aos partidos na próxima eleição.
Finalmente, cabe esclarecer bem o estilo da campanha socialista. O "script" de campanha eleitoral desejado pelo "establishment" burguês repousa no trinômio: ataques pessoais entre os candidatos; celebração das suas grandes realizações no passado; e promessas de melhorias para o futuro.
Obedecer esse "script" implica uma perda política para os partidos de esquerda; desobedecê-lo, contudo, também implica perdas. A essência do debate interno sobre a melhor tática a adotar diante desse dilema não pode ser ofuscada por discussões que impeçam essa clara avaliação, sob pena de desviar os partidos da sua função conscientizadora.[2]
A adoção de uma tática socialista para enfrentar a campanha eleitoral de 2.010 esbarra em alguns obstáculos que urge remover.
O primeiro deles é o reformismo: a ilusão de que a burguesia brasileira, mesmo não apoiando, aceitará um governo que promova reformas estruturais no capitalismo brasileiro a fim de dotá-lo de uma "face humana". Se não bastasse o exemplo do governo Goulart, o completo abandono dessas reformas pelo governo Lula mostra claramente que não há espaço algum para reformar estruturalmente o capitalismo brasileiro.
Mas até mesmo o reformismo parece ser forte demais para algumas correntes do movimento socialista. A proposta dessas correntes é "melhorista". Para elas, o avanço político consiste em reduzir o prejuízo: proposta melhor, nesse contexto, não quer dizer aquela que reivindica direitos, que abre novas perspectivas, mas aquela que representa um prejuízo menor do que aquele proposto pela direita. O melhorismo é a seqüela mais grave das derrotas sofridas pelo socialismo nos anos noventa.
Entretanto, pior do que o melhorismo é o obstáculo representado pelo oportunismo, que, na conjuntura concreta da luta socialista, pode assumir a aparência de uma necessidade. Com efeito, é extremamente importante que os partidos socialistas conservem e aumentem, pelo menos um pouco, suas representações no legislativo, a fim de que o povo possa ter alguma voz em um futuro que se apresenta muito ameaçador e, também para manter um espaço mínimo de presença da luta institucional. Por isso, não é de todo injustificada a preocupação em fazer uma campanha com um discurso propondo simples melhoras na situação presente; em estabelecer alianças amplas com as forças políticas; e em colocar na cabeça da chapa uma figura política que facilite o corpo a corpo dos candidatos proporcionais com os eleitores nas praças e ruas. Contudo, pagar esse preço político para atingir esse objetivo complementar terá evidentemente o efeito de atrasar a conscientização da massa – tarefa primeira e não transigível dos socialistas.
Finalmente, a adoção da tática socialista choca-se com o obstáculo dos estereótipos da campanha eleitoral, construídos por anos de hegemonia da cultura política do "establishment" burguês. Submetendo-se a esses estereótipos, os candidatos socialistas esforçam-se em mimetizar –canhestra e inutilmente - as milionárias campanhas de seus concorrentes da direita.
Campanhas eleitorais nababescas são funcionais para articular o poder político como o poder econômico na ordem social burguesa. O absurdo montante de gastos dessas campanhas constitui importante moeda de troca, usada para compor (e recompor) periodicamente as relações entre o capital privado e as facções da burguesia (no comando e fora do comando na maquina administrativa do Estado). Para isto servem as contribuições das empresas aos candidatos porque permitem utilizar as prestações de contas dos partidos à Justiça Eleitoral como mecanismo seguro de "lavagem" do dinheiro acumulado no Caixa 2 das empresas.
Esse modelo de campanha obviamente não funciona para os candidatos da esquerda. É indispensável organizar uma campanha que caiba dentro dos recursos que podem ser mobilizados na área popular e que utilize os meios de comunicação aos quais podemos ter acesso. Nessa linha, é importante considerar a possibilidade de um uso mais intensivo e racional das rádios e tvs comunitárias, e, especialmente da Internet, em razão da extrema velocidade dessa comunicação, do seu baixo custo, da dificuldade que tem o "establishment" de controlar as mensagens e, sobretudo, do enorme fascínio que exerce sobre a juventude.
Tudo indica que, assim como o comício de rua do período Populista substituiu o "banquete" enquanto principal meio de divulgação das candidaturas durante a República Velha, e como o radio e a TV reduziram muito a importância dos comícios no tempo do Populismo; a Internet, em razão dos seus superiores recursos de comunicação e interatividade e pelo baixo preço do seu uso, substituirá a carreata, a panfletagem e outros meios atuais de proselitismo eleitoral,.[3]
Para avançar, é preciso ver além do que se vê.
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